No teatro brasileiro, espetáculos, atores e momentos da história nacional se cruzam a todo momento. Que o diga Nicete Bruno, convidada de estreia do projeto Mitos do teatro brasileiro, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Entre os seis homenageados do ciclo de bate-papo que começa hoje e segue até outubro, ela traça pequenas histórias. "Conheci Sérgio Britto, por exemplo, no Teatro Universitário do Rio de Janeiro, trabalho que me levou a ser indicada para um espetáculo com Dulcina de Moraes e, consecutivamente, para O anjo negro, de Nelson Rodrigues", recorda atriz, que prossegue o somatório. "Dulcina se tornou grande amiga da famÃlia, bem como Dercy Gonçalves, com quem aprendi, veja que curioso, a comer frango à passarinho", lembra, entre risadas.
Procópio Ferreira, Sérgio Britto, Cacilda Becker, Nelson Rodriogues e Dercy Gonçalves, cujas trajetórias serão resgatadas pelo projeto, fizeram parte da trajetória de Nicete Bruno em diversos momentos, mas é de Dulcina de Moraes, a homenageada de hoje, que ela fala com mais propriedade. Quando, em 1947, a musa voltava de uma turnê internacional de seu mais famoso espetáculo, Chuva, Nicete Bruno era uma atriz amadora de 16 anos. Entretanto, causou na diretora uma impressão de peso no teste para o espetáculo Os filhos de Iório, de Gabriel D'Annunzio, e ganhou o papel principal.
Depois, contracenaram em O sorriso da Gioconda e As solteironas dos chapéus verdes, sucessos que levaram multidões aos teatros, e a admiração mútua descortinou uma amizade duradoura. "Ela era uma grande pensadora e modificou a forma de fazer teatro no Brasil. Uma conversa com ela era muito estimulante. Foi uma grande influência para mim e toda a minha geração", detalha Nicete.
Ao lado de Françoise Forton, que integrou a primeira turma do Teatro Dulcina de Moraes, em 1981, e se tornou grande amiga de Dulcina, Nicete Bruno é chamariz para a estreia do Mitos do teatro brasileiro, projeto mensal que resgata importantes trechos da arte no Brasil. Enlaçando os contagiantes depoimentos das convidadas, os anfitriões Jones Schneider e Luciana Martuchelli pontuarão a conversa com mediações cênicas, de forma a contextualizar historicamente a trajetória da homenageada em relação à do teatro brasileiro. "Falar de teatro só com debate, com todo mundo sentado, é como se não houvesse teatro. Seria uma aula. Por isso, o anfitrião desse projeto é, na verdade, personagem em pequenas histórias que resumem e trazem à tona as principais caracterÃsticas daquele mito", detalha o diretor e curador do projeto, Jones Schneider.
Nas intervenções cênicas, os atores apresentam curiosidades como o mÃtico bastão de Molière, réplica que Dulcina oferecia aos melhores alunos para as três batidas que marcavam o inÃcio dos espetáculos. A devoção ao ator Leopoldo Fróes, a fidelidade ao marido, Odilon Azevedo, e a batalha para construir em BrasÃlia a primeira instituição de ensino superior de teatro do Brasil, em 1981, também figuram importantes momentos, apresentados ao público no texto elaborado pelo jornalista Sérgio Maggio. "Para mim é uma honra, pois ela foi minha mestra, para quem eu fiz meu primeiro teste em palco. Bem como para o Jones Schneider, que se formou na Faculdade Dulcina de Moraes a poucas horas da morte dela, em 1996. Mais que um resgate, é uma homenagem", destaca a atriz Luciana Martuchelli.
A primeira edição do Mitos do teatro brasileiro recuperou, durante a pesquisa histórica, documentos e objetos pessoais da atriz, que foram cedidos para a exposição ao público na noite de hoje. Os vÃdeos raros encontrados também serão exibidos ao fim do evento, que será aberto a perguntas do público. Ao fim, a biógrafa Michelle Bastos relança o livro Dulcina de Moraes: memórias de um teatro brasileiro.
Múltiplas homenagens
Sem uma data especial para a coincidência, Dulcina acumula tributos nesta semana. Amanhã, à s 19h, no Teatro Dulcina, a abertura do Festival de Arte Efêmera homenageia a atriz de forma inusitada. O artista multimÃdia norte-americano Damian Francis Wagner, que trabalhou com músicas de Madonna, Morrissey e New Order, se alia ao grupo mineiro O Grivo para criar de forma espontânea uma canção de caráter experimental, usando as vozes da própria plateia e instrumentos não convencionais.
O evento, batizado de Dom: música performance arte, reúne artistas e público na homenagem pensada por Damian Francis Wagner e pela coordenadora do projeto, Laura Arruda. O objetivo é colaborar na recuperação do Conic como polo de irradiação da cultura na cidade. "A ideia surgiu enquanto eu e Damian conversávamos sobre a Fundação Brasileira do Teatro e a Faculdade Dulcina de Moraes, principalmente sobre o trabalho de Dulcina. A homenagem surgiu como forma de diálogo entre as artes, algo que era importante para a atriz", detalha a coordenadora. A experimentação musical é aberta a todo o público.
Três perguntas - Nicete Bruno
Qual o impacto de Dulcina de Moraes na trajetória de sua carreira?
Ela era autodidata. Na época não existiam escolas de artes dramáticas e ela criou uma universidade. O valor dela é imenso. Eu tive a felicidade de conviver com ela no inÃcio da carreira, de quem recebi a visão profissional de seriedade no ofÃcio. E era maravilhoso assisti-la falar, encantava pela paixão e, claro, pela grandÃssima atriz, diretora e educadora que era. Eu não me conformo que até bem pouco tempo estudantes de teatro não tomassem conhecimento do trabalho dela.
Como você vê a nova geração? Existe o hábito de olhar o passado do teatro?
A ânsia da fama começou a despertar nos jovens um interesse lateral. Na minha época, havia respeito pelo palco, interesse pelo conhecimento. Falo por mim, que não tÃnhamos vontade de aparecer mais ou menos. Estar no teatro era uma forma de conhecer o ser de uma maneira melhor, porque estudávamos personagens de forma profunda.
O que mudou isso, em sua opinião?
Isso é muito relativo. Evolutivamente, o teatro se tornou muito amplo e exigiu um conhecimento maior de tudo que nos rodeia. Veio a tecnologia, a televisão que é uma coisa fantástica. A internet oferece um conhecimento amplo na ponta dos dedos, e torna o teatro o lado artesanal do ator. É ali que nós elaboramos o conhecimento dos nossos personagens. Cabe procurarmos no meio de comunicação a amplitude, uma forma melhor e mais forte de expor.
Ouça trecho da entrevista com Nicete Bruno