Foi como criar um plano de metas. Cada um na sua poética, mas todos interligados com um objetivo comum de escrever sobre Brasília para celebrar o cinquentenário. Liderados por Pedro Biondi, um grupo de seis autores passou meses entre reuniões colaborativas e o trabalho solitário de pensar a cidade e tirar dela textos relevantes. O resultado está em 50 anos em seis, que Pedro, Nicolas Behr, Liziane Guazina, José Rezende Jr., Fernanda Barreto e André Giusti lançam hoje no Açougue Cultural T-Bone.
rasília não é uma só no livro do sexteto. E também está longe de ser paradisíaca, invenção máxima da utopia moderna, sonho arquitetônico e império da qualidade de vida. Louvores existem, mas são muito pessoais em 50 anos em seis. ;De maneira geral, não são nem textos de louvor nem de rejeição à cidade. São textos de pessoas que gostam daqui de viver aqui, mas também enxergam os problemas da cidade;, explica Pedro.
A proposta era construir um livro coletivo e as reuniões periódicas ajudaram a fechar o formato do projeto gráfico de Bruno Schurmann e Leonardo Menezes. Foi de Nicolas Behr a ideia acertada de não isolar os autores em blocos. Os textos aparecem misturados e sem assinaturas. Um retrato minúsculo no alto da página indica a autoria. ;Esse livro mostra uma coisa óbvia que é a diversidade, esse mix que reflete a mistura, um gaúcho, um mineiro, um mato-grossense. A única unidade é Brasília. O livro mostra esse mosaico que é nossa cultura;, garante Behr.
De fato, não há um só autor nascido em Brasília na coletânea. Giusti é carioca, Fernanda e Liziane, gaúchas, Rezende, mineiro e Biondi veio de São Paulo há cinco anos. Behr chegou adolescente, mas nasceu em Mato Grosso. Nada disso, no entanto, turva as visões. Alguns textos são sobras de livros recém-publicados, porque o único novato aqui é Fernanda. André Giusti optou por contos que não entraram em A liberdade é amarela e conversível. ;Acabaram de fora justamente porque falavam de algo muito específico: uma cidade. Parece mesmo que estavam esperando uma situação mais adequada para serem publicados;, conta. ;Procurei explorar neles as diferenças sociais que existem no DF, temperadas com a prepotência com a qual, em alguns casos, a classe alta trata quem está abaixo dela, seus empregados no trabalho, em casa, etc. É claro que isso não é só coisa de Brasília, mas é aqui que vivemos, né?;
Behr também incluiu poemas que não couberam em Laranja seleta. ;Eram poemas que ficavam me puxando pela manga da blusa e agora vão me deixar em paz.; As mesmas relações humanas que Liziane Guazina explora e destrincha em Entre Facas e mais alguns contos estão nos textos de 50 anos em seis. ;Tento desenvolver o tema em uma cidade de limites invisíveis, porém existentes. Brasília é um grande palco, em que os anônimos personagens amam, sofrem, se divertem, se escondem, em uma vida privada protegida pelo concreto e pelo excesso de luz. É na escuridão da relação íntima e cotidiana entre as pessoas e entre a cidade e os moradores que está meu interesse de criação;, avisa a autora de Beiruteanas, uma divertida e saudosa conversa de boteco.
Silenciosos acordos
Na poesia de Fernanda, o mesmo cotidiano que motiva Liziane toma forma espontânea. A cidade é pano de fundo para tratar de ;coisas simples e ordinárias que edificam a vida pelo planalto;. ;O período de seca, um grande amor, um vizinho com o qual estabelecemos silenciosos acordos de boa convivência, um triste quinhão do cerrado em chamas, um namoro tão quadradinho quanto a capital ou um quase-amor segunda-feira no Beirute;, elenca Fernanda, há sete anos radicada no Plano Piloto.
É a outra ponta, a do contraste e da estranheza, e não a banalidade cotidiana, o que motiva Biondi, outro exilado. ;Até mudar para cá, morei a vida toda em São Paulo. É um contraste grande tanto para o lado positivo quanto negativo. A diferença entre as duas cidades e a experiência de uma nova cidade permeiam bastante minha escrita sobre Brasília;, confessa o escritor, que faz da cidade personagem de muitos de seus textos, ao contrário de Rezende, que aposta em personagens e suas memórias pioneiras. ;Brasília tem essa coisa também mítica, no sentido de lendário, uma coisa épica da construção, das pessoas que chegaram acreditando. E de certa forma depois se sentiram deserdadas. O que busco é contar a história das pessoas, o drama, os sonhos, que geralmente não são realizados nas minhas histórias. Contar a experiência humana;, avisa o mineiro de Aymorés. Os personagens conduzem as narrativas de Rezende pela geografia de uma cidade que poderia ter qualquer nome se os contos não atendessem por títulos como Buraco do tatu e Conic.
Trechos
Esporte é vida
(Pedro Biondi)
Pra quem?
Na galopadas de Nikes e Reeboks
As cigarras morrem como moscas
Cenas de uma cinquentona
(Liziane Guazina)
Brasiliense qualquer: Moço, fui ao banco lá no Paranoá
E disseram que meu benefício não consta no sistema
Para pagamento do INSS
Atendente: minha senhora, eles devem ter errado. Volte lá.
Brasiliense qualquer: Meu senhor, eles não erraram.
Está vendo o carimbo do gerente aqui, ó. Está escrito:
Benefício não encontrado.
Atendente: Minha senhora, então ainda não foi pago!
Brasiliense qualquer: Meu senhor, vocês enviaram um
documento oficial para minha casa informando a data
de pagamento do benefício. Foi liberado dois dias atrás!
Olhe aqui o papel de vocês.
Atendente: Então me deixe ver no sistema.
(digita no computador)
Brasiliense qualquer: Ok.
Atendente: Foi liberado sim. O pagamento está nesta agência do Banco do Brasil na Asa Sul.
Brasiliense qualquer: Meu senhor, eu vim aqui ontem para me certificar de que o banco certo era o Itaú do Paranoá, lembra? Estranhei a informação, pois é muito longe da minha casa. E agora o senhor, que ontem confirmou o endereço, me diz que o banco certo fica na Asa Sul?
Atendente: A senhora foi ao banco errado, foi isso.
Brasiliense qualquer: Eu fui ao banco que o INSS me mandou ir em documento oficial. E o tempo que eu perdi? E o gasto que eu tive?
Atendente: Então vá ao banco certo.
Brasiliense qualquer (gritando): Mas qual a razão do erro?
Atendente (olha para o segurança): Minha senhora, deixe disso. Vá ao banco e receba seu benefício direitinho, viu?