"Pessoal, são só dois quilos de alimento. Vamô entrar aí, galera", conclamou, ao microfone, o mestre de cerimônias, chamando os que preferiram ficar do lado de fora dos portões montados em frente à Administração Regional de Ceilândia. Era noite de sábado e o Ferrock entraria pela madrugada. O apelo pouco adiantou. A quantidade de gente do lado de dentro da arena não ultrapassou a casa das centenas. Teve quem enxergou alguma vantagem nisso. "Esperava que tivesse mais público. Mas não tem problema não. Mais vazio, menos problemas", calculava o professor Fábio Braynee, 35 anos, que compareceu ao show para ver, principalmente, duas performances: a de Johnny Winter e o da banda paulista de trash metal Anthares. "Bem, é claro que não será como no auge. Mas espero que Johnny Winter tenha muita qualidade musical", conformava-se Braynee sobre a performance do rockeiro texano.
Nascido John Dawson Winter III no Texas, Johnny Winter lançou o primeiro álbum ainda na adolescência, ao lado do irmão Edgar Winter, que, assim como ele, nasceu albino. A turnê de lançamento do álbum I'm a bluesman trouxe pela primeira vez para o Brasil um dos nomes mais conhecidos do gênero nos Estados Unidos, incluído no hall da fama do blues, em 1986. Cumprindo trajeto de carro de Goiânia para Brasília, Johnny, 66 anos, precisou ser amparado pela equipe até ocupar seu lugar no palco. O veterano passou a performance inteira sentado numa cadeira. A voz queimada do blueseiro ressente de vigor, mas as mãos de guitarrista deslizavam precisas pelas cordas do instrumento nos acordes de Miss Ann, I'm tore down, All over now, She likes to boogie real e Good morning, litle school girl.
Ele e os músicos Scott Spray (baixo), Paul Nelson (guitarra) e Vito Liuzzi (bateria) não planejaram o set list do show com duração de uma hora. O repertório de canções era decidido em segundos, por meio de cochichos trocados entre os artistas. Numa edição comemorativa dos 25 anos do Ferrock, em que predominou um público abaixo dos 20 anos, Winter levantou "as arquibancadas" ao mostrar virtuosismo nos longos solos de Red house e Black Jack, mas ignorava os pedidos da plateia para executar Still alive and well e Medicine man. O servidor público Hido Brasil, 52 anos, não se importou nem um pouquinho. "Qualquer coisa que ele toque, é legal", afirmou. Após a apresentação, Winter e sua trupe entraram direto na van que os levaria para o hotel e depois rumo a Belo Horizonte, onde fará continuação da turnê.
Ecos do Ferrock
Pela primeira vez, a edição comemorativa de um quarto de século do festival de rock mais antigo do Distrito Federal teve encerramento de grupos internacionais: como o bluesman Johnny Winter e os ingleses do Napalm Death. Mas nada disso importa para o organizador Ari Barros. Apesar dos altos decibéis alcançados pelo barulho das guitarras em todos esses anos de festival, o que o organizador gosta de enumerar mesmo são os sucessos de uma revolução silenciosa operada na satélite mais populosa do DF, como construção de uma escola, remoção de um aterro sanitário e o projeto cultural Meio dia em ponto, entre outras ações conseguidas pela ONG.
É difícil, aliás, conversar com Ari Barros sem que o diálogo não enverede para o lado social. O presidente da Associação Cultural Ferrock não perde tempo calculando a importância dentro do calendário rockeiro nacional do festival - criado por ele há 25 anos. "Eu, Ari, não sei responder essa pergunta. Nunca pensei sobre isso", resume. Ao traçar o retrospecto do evento surgido por geração espontânea, Barros recorda o começo quando "trazia os bolachões debaixo do braço para serem executados em aparelhos de som do tipo 3 em 1 na casa de amigos do P Norte".
A brincadeira foi levada para as ruas de lazer da vizinhança e, posteriormente, ganhou o acréscimo de apresentações ao vivo. Foi finalmente batizada de Fé revolução rock (Ferrock). E oficializada para acontecer em 12 de outubro, em homenagem às crianças. "Ainda era a época do regime militar. Então, quando encaminhávamos ofícios para os governantes trocávamos a palavra revolução por recreação", relembra Barros.
"Ouso dizer que o Ferrock inspirou festivais até mesmo como o Porão do Rock. Mas, como é de Ceilândia, nunca foi reconhecido assim", opinou Tomaz André da Rocha, 40 anos, editor da revista especializada em rock Zine Oficial. O secretário Antônio Brito tem 60 anos, 40 dedicados a apreciar rock and roll. Ele já perdeu as contas de quantas edições do Ferrock já compareceu. "Gosto de tudo. O clima é bom. É um evento familiar. Acho somente que poderia existir mais integração entre as cidades", afirma o fã sobre o escasso comparecimento de público deste ano (apenas 500 pessoas, segundo cálculo da Polícia Militar).
Liquidificador de culturas
Nesta edição, o Ferrock promoveu o encontro do rock and roll com a cultura popular com representantes de manifestações populares como catira, dança folclórica e emboladores de coco. Capitão da Folia de Reis e da catira dos Irmãos Vieira, José Núcias já está escolado nesse tipo de mistura. "Acho que é a terceira vez que me apresento em eventos dessa qualidade. Teve no Céu Azul que teve até funk. A cultura é uma coisa muito bonita. Ela tem o poder de juntar estilos diferentes e todo mundo gosta porque é cultura", resume Núcias. Ari Barros defendeu a iniciativa com unhas e dentes. "Nós temos de ter esse tipo de ousadia. Do mesmo jeito que nós não deixamos o rock morrer, eles não deixam a verdadeira cultura popular brasileira desaparecer. Os governantes deveriam levar esses representantes para dentro dos teatros", conclama Barros.