Um sujeito pálido e desinteressante, de ombros encurvados e voz rouca, subiu no palco como uma espécie de vulto. ;Quero apresentar um amigo meu;, anunciou a cantora folk Joan Baez, a estrela da noite. O desconhecido chegou sem ser notado. E provocou estranheza. Na plateia daquele concerto, organizado em um campo no sul de Nova Jersey em 1963, um rapaz de 18 anos foi arrebatado pelo mistério. O cantor era Bob Dylan. E o fã recém-convertido, Greil Marcus ; que, 40 anos mais tarde, narra o episódio no livro Like a rolling stone ; Bob Dylan na encruzilhada.
O ensaio, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, começa aí: na primeira vez em que o jornalista e crítico de rock ouviu a voz do ídolo. Não deixa de ser um ponto de partida curioso para a ;biografia; de uma canção. Mas as lembranças não são desfiadas em vão. O cenário daquela performance encabulada de Dylan era o símbolo de uma América transtornada: uma tenda a céu aberto, palanque improvisado para o protesto político. Lá fora, o Vietnã sangrava e a Guerra Fria esquentava. Pacifistas pediam a destruição das armas nucleares e o fim da segregação racial. Os tempos começavam a mudar.
;A nação estava chegando a um limite, em que teria de cumprir suas promessas de liberdade e igualdade ou admitir, nem que fosse para si mesma, que aquelas promessas eram mentiras;, escreve Marcus. Para o autor, não há como desprezar a influência da música de Dylan ; principalmente de Like a rolling stone ; para as mudanças de costumes que alteraram a história dos Estados Unidos a partir dos anos 1960. É uma tese ambiciosa. Mas, em 252 páginas, Marcus chega muito perto de desvendar o enigma.
Formado em estudos norte-americanos e em ciências políticas pela Universidade da Califórnia, Marcus escreveu resenhas para a Rolling Stone e livros sobre Elvis Presley e Sex Pistols. Desde os primeiros textos, interpreta o rock como um dos principais símbolos da cultura norte-americana. Daí o elogiadíssimo Mystery train, que, publicado em 1975, elege o gênero musical como um marco tão poderoso para o imaginário da nação quanto Moby Dick e O grande Gatsby. A história engendrada pelo autor no livro Like a rolling stone é a de um país em mutação.
Dentro da canção
Antes de alçar o voo filosófico, Marcus submete a canção de Dylan a uma autópsia. Com uma prosa febril, tomada por uma torrente de adjetivos e insights amalucados (um capítulo inteiro é dedicado a uma versão italiana de hip-hop para a música, incluída no filme Masked and anonymous, de 2003), o autor tenta localizar o ponto em que se originou a revolução. Em alguns trechos, recorre a depoimentos do próprio compositor. ;Eu tinha parado de cantar e interpretar ; eu me vi escrevendo essa canção, essa história, essa longa peça de vômito, com vinte páginas de extensão, e dela eu tirei Like a rolling stone e a transformei num compacto simples;, contou a uma rádio de Montreal, em 1966.
A trama narrada na música ; sobre uma mulher que se descobre abandonada, sozinha, como uma pedra que rola ; é apenas um detalhe no mosaico impressionista de Marcus. Mais importantes são a performance do músico, cristalizada na gravação de 15 de junho de 1965, no Studio A da gravadora Columbia Records, e os shows ruidosos, que provocaram reações de confusão e fúria. O trovador folk levantou a bandeira do rock;n; roll. Nas rádios, a canção soava alienígena, e não apenas por conta dos seis minutos de duração. ;Ela tinha a ver com a falência moral das pessoas que estavam ouvindo. A história da música era a história das pessoas, quer gostassem, quer não;, resume o escritor.
A faixa, que abre o disco Highway 61 revisited (1965), foi eleita pela revista Rolling Stone como a melhor de todos os tempos. Um evento que, para Marcus, ainda não foi superado ou totalmente compreendido. Dylan, como de costume, será o último a explicá-la. ;É como se um fantasma estivesse escrevendo uma música como essa. Essa coisa nos dá a canção e depois vai embora, desaparece;, afirmou ao Los Angeles Times, em 2004. A fãs como Marcus, a incômoda pergunta disparada no refrão talvez nunca perca o sentido: ;Como você se sente?;
"Eu tinha parado de cantar e interpretar ; eu me vi escrevendo essa canção, essa história, essa longa peça de vômito, com vinte páginas de extensão, e dela eu tirei Like a rolling stone e a transformei num compacto simples"
Bob Dylan a uma rádio de Montreal, em 1966
A música
Like a rolling stone
Ah, você
Frequentou as melhores escolas
Muito bem, senhorita solitária
Mas você sabe que só enchia a cara lá
Ninguém nunca a ensinou a viver na rua
E agora você aprendeu que vai ter que se acostumar a isso
Você dizia que nunca ia se comprometer
Com o vagabundo misterioso, mas agora percebe
Que ele não tem álibis para vender
Enquanto encara o vazio dos olhos dele
E pergunta:
;Quer fazer um trato?;
Como você se sente?
Como você se sente
Só com você mesma
Sem ter casa para onde ir
Como uma completa desconhecida
Como uma pedra que rola?
(Tradução de Eduardo Bueno)
Confira trecho do livro Like a Rolling Stone ; Bob Dylan na encruzilhada
"O som de Like a Rolling Stone é tão rico que a canção nunca é tocada duas vezes da mesma maneira. Podemos saber que, para nós, uma certa palavra é o que queremos; podemos nos preparar para empurrar tudo o mais na canção que vem antes daquela parte da música que queremos. Nunca funciona. Ficamos à espera, para surpreender o momento; descobrimos que, enquanto o fazemos, outro momento se esgueirou para trás de nós e nos surpreendeu."