Não demorou muito para que os participantes do ensaio de O filhote do filhote do elefante, espetáculo da companhia Esquadrão da Vida que estreia hoje na Praça Ary Pára-Raios, no Conic, estivessem com os olhos marejados d'água durante a entrevista. As lembranças do palhaço, ator e diretor Ary Pára-Raios (1939-2003) ainda são muito presentes no cotidiano do grupo mantido pela filha do mestre Maíra Oliveira, 33 anos, desde a morte do pai, há sete anos. "No dia do enterro dele, as pessoas me perguntavam se eu continuaria o trabalho que ele começou. Eu respondi que seguiria meus sonhos. Acho que isso já era dar continuidade", relembra a atriz, que começou a atuar ainda criança.
Completando 30 anos de resistência, o Esquadrão da Vida encena pela primeira vez a adaptação feita pelo próprio Pára-Raios do texto O filhote de elefante, de Bertolt Brecht. "É um texto pouco conhecido porque é um entreato de Um homem é um homem. É a história de uma trupe de teatro que está tentando montar um espetáculo", explica Maíra. Além do Conic, O filhote do filhote do elefante será apresentado em palcos de rua amanhã na Praça do Cidadão, no Setor Comercial Sul, e na Feira da Ceilândia, na sexta.
Uma analogia inevitável entre o tema deste texto e a trajetória do Esquadrão após a morte de seu fundador não pode deixar de ser traçada. "Muita gente me dizia que eu deveria seguir o meu próprio caminho, em vez de manter o grupo", relembra Maíra. "Eu pensava: 'Terei de voltar às ruas, às quadras para encenar.' Parece simples tocar o Esquadrão, mas é extremamente difícil. Eu tive muito tempo para pensar em tudo e ter muita leveza para tomar decisões", explicou a diretora.
Maíra repete o mesmo método didático e orgânico que o pai professava. Por ele, o ator deve extrair de dentro das entranhas uma forma específica de atuação. "O Ary não dirigia o todo do espetáculo. Ele dirigia o ator. Era incrível como ele conseguia fazer com que a pessoa acreditasse que fosse possível fazer qualquer coisa. O jeito de ensinar está nela (Maíra), porque ela cresceu com isso", atesta a assistente de direção Adriana Bruno, uma das pupilas de Pára-Raios.
Entre as peripécias que o grupo precisa manter no preparo para enfrentar o público de rua estão os ensaios feitos todos os dias. Longe de parecer dedicação além da conta, as reuniões diárias são necessárias por causa dos exercícios de acrobacias circenses, fundamentais no projeto do grupo feito pela mistura de linguagens entre teatro, circo e música. "Nós ensaiamos mesmo sem saber quando vamos encenar. Não é como Em busca de um teatro pobre, de Jerzy Grotowsky, que dispensa a presença do público. É uma construção", define a diretora.
Na atual escola de formação do Esquadrão da Vida estão os atores Caísa Tibúrcio, Gabriel Preusse, Joana Vieira, Maíra Oliveira, Rosana Loren e Vinícius Santana. Ao longo de 30 anos de existência, o grupo influenciou vários artistas da cidade. Os filhotes do Esquadrão vão desde o Circo Teatro Udi Grudi até a cantora Célia Porto. A permanência do grupo é a prova de que as mensagens do Esquadrão da Vida e de Ary Pára-Raios continuam a ecoar pela cidade.
Vanguarda
Diretor teatral polonês, Grotowsky (1933-1999) é considerado uma das figuras centrais do teatro de vanguarda do século 20. O texto de Em busca de um teatro pobre, de sua autoria, é o mais conhecido em português. Nele, existe a proposta de um teatro ritualístico, encenado para poucos.
CONIC TEIMOSO
O espetáculo do Esquadrão da Vida movimenta o projeto Conic Ninguém Pode, que pretende revitalizar a região devolvendo a sua vocação para a arte. Sábado será oficialmente lançado o projeto, com o show da banda Watson e discotecagem de DJs das festas Criolina, Cansei de Ser Cult e Play! (às 16h, com entrada franca). A ideia da prefeita, Flávia Portela, é premiar aqueles que lutam pela região, como Osvaldo, do Espaço Galeria, Ivan Presença, Paulo Tovar (in memorian), o Pacotão, os irmãos Adriano e Fernando Guimarães, entre outros. "Tem tudo a ver com a plantinha chamada comigo ninguém pode mesmo. Quer mostrar a resistência e a teimosia do Conic frente a todo o descaso das autoridades, da falta de políticas públicas para a cultura, para o social, para o tombamento", destaca Flávia.
O FILHOTE DO FILHOTE DO ELEFANTE
Sempre às 17h. Hoje na praça Ary Pára-Raios, no Conic (SDS). Amanhã, na Praça do Cidadão, Setor Comercial Sul. Na sexta, na Feira da Ceilândia. Acesso livre. Informações: 3347-594. Classificação indicativa livre.