Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Duas exposições mostram imagens, muitas inéditas, do nascimento de Brasília

Se Roma, Paris ou até mesmo o Rio de Janeiro tivessem contado com a quantidade de lentes apontadas para suas ruas antes mesmo de seu nascimento, talvez registrar o surgimento de cidades fosse algo banal na modernidade. O fato de não ser o caso torna a história do registro fotográfico de Brasília ainda mais excepcional na história da fotografia. Poucas cidades tiveram direito ao "pré-natal" ao qual o sonho de Juscelino Kubitschek foi submetido. Por aqui houve planejamento, maquete, medição de terreno, tudo fotografado nos mínimos detalhes para garantir um parto bem documentado. Graças a isso, hoje é possível comemorar o cinquentenário com exposições como Foto na hora e O passageiro da esperança, em cartaz na Caixa Cultural. A primeira traz 140 imagens de um acervo de 10 mil negativos colecionados pelo diplomata Joaquim Paiva ao longo das últimas quatro décadas. As fotografias inéditas estão divididas em blocos por décadas e temas, mas vale ressaltar que são as pessoas, e não a arquitetura monumental, as estrelas dos registros de Paiva. Na segunda, O passageiro da esperança, organizada pelo Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal (Depha), as imagens levam assinatura de Mário Fontenelle, piauiense que se tornou o fotógrafo oficial de JK durante a construção da cidade. A arquitetura tão fotografada de Brasília é apenas um cenário para Joaquim Paiva mostrar os tipos da cidade. O fotógrafo e diplomata veio do Rio de Janeiro em 1970 e não se deixou intimidar pela escala monumental. Além dos já conhecidos registros dos barracos de madeira do Núcleo Bandeirante, Foto na hora tem principalmente gente, sempre fotografada de muito perto, como se Paiva quisesse realizar um mapa antropológico da ocupação da capital moderna. A organização cronológica também obedece um percurso temático. Há um conjunto dedicado à Rodoviária, outro ao Vale do Amanhecer, um lote de fotos do Pacotão na década de 1970 e ainda um bom ensaio nas quadras ainda em fase de construção. "O que quero contar é a história do povo da cidade. Fotografei muito as pessoas tem muitos retratos e é uma história que conta a transformação da cidade", conta o autor. "Em 1970 era uma cidade no meio desse cerrado, cuja presença era tão mais evidente que hoje em dia. A cidade se transformou muito, se adensou, muitos edifícios foram construídos. A arquitetura, que é o símbolo de Brasília, aparece de uma maneira não tão evidente, porque é muito difícil fotografar esses ícones, que já estão tão desgastados." Ao longo dos ensaios, o cenário brasiliense aos poucos se modifica. A passagem do tempo se nota nos vazios preenchidos à medida que os anos avançam e nos estilos e vestimentas dos retratados. Ao chegar tão perto dessa massa anônima, o fotógrafo realiza uma homenagem ao contingente humano que tornou possível a existência da cidade. "Entre 1970 e 2010 não só a cidade se transformou, a época eram 200 mil habitantes hoje são 2 milhões, o Plano Piloto você tinha realmente a dimensão bucólica da cidade, os horizonte das colinas, as árvores não haviam crescido. Sentia realmente estar vivendo numa maquete. E por isso parecia até uma cidade meio fia e por isso até eu fui para o Núcleo Bandeirante, que me pareceu muito vivo, muito natural." Paiva gostaria de transformar o conjunto de fotografias em livro. Em uma das vitrines da exposição ele apresenta uma maquete de uma possível publicação. "Mas falta patrocínio." No canteiro Mario Fontenelle era mecânico de avião quando ganhou de JK uma câmera Leica. Com ela fez o primeiro registro do cruzamento dos eixos em pleno cerrado, marca que norteou todo o projeto de Lucio Costa para a cidade. Nos anos de construção, Fontenelle trocou os ares pelo chão vermelho e virou o fotógrafo oficial do então presidente e da cidade. Foi o clima de canteiro de obras tão presente nas imagens desse piauiense nascido no Delta do Parnaíba que a curadora Denis Scoot quis ressaltar em O passageiro da esperança. A cenografia da mostra reproduz o concreto cinza dos edifícios em fase de construção. As colunas do Palácio da Alvorada são as estrelas da montagem. Essas estruturas servem de suporte para projeção de imagens e para os painéis fotográficos. "Organizei tudo dentro de um contexto histórico. A primeira parte tem datas separadas por setores e a parte de multimídia tem as construções, o cotidiano das pessoas e o que acontecia na realidade na cidade na época da inauguração", avisa a curadora. "E há outra parte só sobre o Fontenelle, onde falo sobre a vida dele e os trabalhos de fotomontagem que fazia para poder sobreviver." Depois que JK inaugurou a capital, Fontenelle deixou de ser presença constante nas atividades oficiais. "Ele fotografou Brasília já construída. Era uma epopeia mesmo, o presidente vivia no meio das pessoas simples e o Fontenelle o acompanhava. Ele se acostumou a estar nesse meio. Quando a cidade inaugurou esse momento de epopeia começou a morrer e ele começou a se sentir desvalorizado. Aí veio a fase de doença, ele vivia uma vida desregrada, fumava muito, dormia pouco", conta Denis. Fontenelle morreu aos 67 anos, em 1986, no Lar dos Velhinhos Maria Madalena, no Núcleo Bandeirante. Apenas três amigos compareceram ao enterro do fotógrafo, que nos últimos anos de vida sofrera um derrame responsável por paralisar o lado esquerdo do corpo e perdera uma perna em consequência de gangrena. O PASSAGEIRO DA ESPERANÇA Fotografias de Mario Fontenelle. Curadoria de Denis Scoot. Visitação até 23 de maio, de terça a domingo, das 9h às 21h, na Caixa Cultural (SBS Qd 4, Lote 3/4). FOTO NA HORA Exposição de fotografias de Joaquim Paiva.