Numa coincidência histórica, o Projeto Língua Mãe teve Portugal como marco inicial. Assim como os navegantes portugueses do século 16, a nau cruzou o Atlântico e desembarcou em ex-colônias portuguesas. Primeiro, em Angola no continente africano e, por fim, ignorando a ausência de águas salgadas, em Brasília. No comando dessa embarcação: o percussionista brasileiro Naná Vasconcelos, 66 anos, criando laços entre crianças africanas, brasileiras e portuguesas.
;Eu estava morando no exterior há muitos anos e me deu vontade de fazer alguma coisa útil pelas crianças do Brasil. Como eu entendo de folclore, achei que devia ensinar isso e fiz o projeto ABC Musical, em 1994, nas escolas. Agora estamos fazendo o Língua Mãe nos três países;, explica Naná. Patrocinado pela Petrobras, o projeto reunirá no aniversário de Brasília, em 21 de abril, 60 crianças brasileiras, 30 portuguesas e 30 angolanas para apresentação em conjunto com a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro.
O ensaio é coisa séria. ;Quem não quiser ficar aqui, não precisa. Não quero saber de anarquia;, bronqueava o mestre para alguns dos aprendizes que faziam bagunça durante o ensaio nas dependências do Teatro Nacional. A disciplina é necessária para que até o dia da performance as crianças da Escola Classe 62, de Ceilândia, estejam em ponto de bala. ;Primeiro ensino as letras das músicas. Nesse momento o canto ainda está muito gritado, desafinado. Mais tarde, explico o que é que eles estão cantando e insiro imagens. Eles começam a imaginar as cenas. Daí eles começam a colocar nuances, dramatizam. É ótimo!”, explica Naná, sobre a oficina que dura uma semana em cada localidade.
;Muitas das nossas canções são verdadeiras óperas populares. Faremos três suítes, uma canção de cada um dos países que fazem parte do nosso folclore e que não existem mais no lugar de origem. Em Angola, fomos recebidos como filhos pródigos que estão devolvendo alguma coisa deles com uma nova roupagem. Em Portugal, as crianças não sabiam que a Nau Catarineta era uma canção portuguesa;, observou o percussionista. Do Brasil, a escolhida será É de manhã, cuja letra descreve um amanhecer preguiçoso. ;É de manhã/ Vou buscar minha fulô/ A barra do dia vem/ O galo cocorocô.;
[SAIBAMAIS]
As crianças , entre 7 e 10 anos, das cidades de Porto e Vila Nova de Gaia (Portugal) e Luanda (Angola) desembarcam em Brasília em 11 de abril para ensaios coletivos até o aniversário de 50 anos da capital. Junta-se a elas, o maestro Gil Jardim, antigo parceiro de Naná, responsável pelos arranjos e pela regência da orquestra sinfônica no evento. Uma equipe de documentário acompanha todas as etapas de execução do projeto. A ideia é transformar o registro da jornada em um DVD que será distribuído gratuitamente em escolas públicas do Brasil.
Atenção
Até a chegada de Gil Jardim e a volta de Naná, a pianista Diana Daher prosseguirá com os ensaios. ;Tento observar o método dele (Naná). Ele exerce um domínio impressionante. Basta um olhar para conseguir a atenção das crianças;, observa a musicista. Suzana Maria de Jesus, 10 anos e cursando a 4; série, não conhecia nenhuma das músicas do repertório do show. Ela gosta mesmo é de ouvir Roberto Carlos e Fábio Jr. Apertando um pouco, a garota admite que sim, também ouve Rebolation, sucesso nacional do Parangolé. ;Estou gostando muito da oficina. É muito divertido;, classificou a estudante.
Júlia Pereira, 10 anos já tomou lições de música antes, mas enxergou diferenças entre o que já havia aprendido e o que lhe está sendo apresentado pelo percussionista brasileiro. ;Ele usa uns instrumentos diferentes, parecem meio indianos, acho;, classificou a menina sobre um gongo e o berimbau, ;Você olha para as crianças aqui e percebe que elas são todas misturadas. Cada uma com uma característica física diferente;, observou Vasconcelos, sobre o balaio étnico formado pelas crianças da satélite mais populosa do Distrito Federal. Ítalo, Nicolas, Izabelle, Vanessa, Ingrid e outros serão os protagonistas de uma história de integração entre os três países.
Ouça entrevista com Naná Vasconcelos
O coral
60
crianças brasileiras
30
angolanas
30
portuguesas
Ponto a ponto Naná Vasconcelos
ANGOLA
;Angola é um choque térmico e cultural. Nós saímos de Portugal, na Europa, e fomos para Angola, que está um caos. O país está sendo todo reconstruído depois de 40 anos de guerras. São muitos extremos. Por um lado, tem gente muito rica e, por outro, muita miséria. Você vê carros superluxos rodando em estradas inexistentes. Muita gente queria participar das oficinas, inclusive adultos, para terem o que comer.;
MUITAS ÁFRICAS
;Um fenômeno que aconteceu no Brasil é que cada estado nosso tem várias Áfricas dentro deles. Muitas coisas que vieram de diferentes partes de lá só se reuniram aqui como a capoeira e o berimbau. O samba também. O pandeiro tem origem árabe, cigana, mas no Brasil é usado num contexto com outros instrumentos afros.;
COLONIZAÇÃO
;O Brasil tem essa riqueza misturada. A colonização portuguesa é que permitiu que o ambiente do Brasil fosse assim. Eles já se misturavam em Portugal. Eles diziam para os negros ;Brinca, dança, mas trabalha; e não proibiam as manifestações. Por isso, permaneceu a riqueza cultural. Por isso, nós temos tudo isso.;