Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Artigo: Corpo estranho

Rio de Janeiro, dezembro de 1986. Durante a performance da Legião Urbana no programa Chico & Caetano, as câmeras flagram os dois cantores-apresentadores, olhares perplexos, acompanhando a dança característica ; meio Ian Curtis, meio Jim Morrison, todo Renato Russo ; do vocalista em Ainda é cedo. Poucos instantes da música brasileira são tão emblemáticos. Ali, o rock nacional ocupa o centro do palco; aos medalhões da MPB só resta observar, comentar e, no final, aplaudir. Em momento raramente visto na trajetória da cultura brasileira e jamais repetido, as diferenças geracionais se tornam evidentes: há respeito, mas há distanciamento. Tudo porque, com a ditadura militar e a instauração do ;vazio cultural; nos anos 1970 por conta da censura e do desbunde, alguma coisa havia se quebrado no percurso da música jovem. Coube a Renato Russo encabeçar a reconstrução dessa ponte entre artistas e público ; só que à sua maneira, sem olhar para o retrovisor de forma reverente ou submissa.

No artigo ;Roqueiros colonizados mas atentos, conscientes;, que escreveu em 1983, Renato já dava pistas de como ocorrera o desvio de rota: ;Toda a informação que nos foi dirigida nos levou a assimilar um outro estilo, que consideramos tão nosso quanto um sambista carioca considera o seu samba: são 18 anos de cultura alienígena;. Em outras palavras, o ideário contido nos versos de Geração coca-cola. E essa formação ;alienígena; foi decisiva para que, até hoje, sua trajetória e de outras bandas brasileiras dos anos 1980 sejam consideradas, ainda que reservadamente, um corpo estranho na chamada ;linha evolutiva; da MPB. Ao contrário do que ocorreu com outros expoentes de seu tempo, como Cazuza, Arnaldo Antunes e Herbert Vianna, todos devidamente absorvidos. E do que seria retomado com força nos anos 1990 e 2000 por Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Los Hermanos, discípulos assumidos de Gilberto Gil, Jorge Ben e Chico Buarque.

A verdade é que, ao longo da carreira, Renato Russo se comunicou com maior desenvoltura com os fãs do que com os colegas músicos, com a mídia do eixo Rio-São Paulo e demais formadores de opinião. Talvez pelo fato de sua força se concentrar na poética e nem tanto na musicalidade ; aos tímpanos dos puristas, demasiadamente simples e assemelhada ao formato consagrado no rock anglo-saxão. Mesmo com o traço inconfundível de peculiaridade (ou exatamente por causa disso), a Legião Urbana foi a banda mais bem-sucedida da história do rock nacional: mais de 10 milhões de discos vendidos.

[SAIBAMAIS]Como lembra o jornalista carioca Arthur Dapieve, a geração 1980 do rock brasileiro se rebelou. Deu as costas para a plácida e um tanto acomodada MPB dos anos 1970 (ainda que Renato admirasse isoladamente alguns artistas, como Lô, Milton e outros mineiros do Clube da Esquina). Aquele grupo de jovens foi buscar no exterior as informações sonoras ; a começar pelo punk ; que externavam esse descontentamento. Especialmente em Brasília, eles adicionaram à urgência punk uma poética incisiva e insurgente, baseada no cotidiano nacional. Assim, surgiram Faroeste caboclo, Música urbana e outras crônicas de um Brasil silenciado e de uma juventude desorientada; adolescentes na capital utópica, precocemente desvirtuada. Sincronizados com o tempo, porém perdidos no espaço.

;Dentro da geração 1980, Renato Russo foi o mais estranho entre os estranhos no ninho, aquele que se enxergava muito, muito mais no rock anglo-saxão do que em Chico ou Caetano. Era como se ele sempre tivesse tido presente uma dimensão globalizada da música pop;, afirma Arthur Dapieve. ;Isso explica sua permanência: ele continua a sinalizar uma ruptura, uma irritação, uma rebelião, uma maneira de dizer ;o Brasil não é só isso, ele também sou eu!”, acrescenta o autor de Renato Russo ; O trovador solitário.

Após a morte de Renato Russo, em 1996, o que ainda havia de animosidade se dissipou. Sem sua presença, surgiram homenagens bem-intencionadas, outras estapafúrdias e diversos tributos à Legião ; alguns com participações de artistas obviamente deslocados, nada à vontade diante daquele repertório enérgico, intenso, intransferível. O vocalista ganhou dos fãs o status de mito indestrutível; da crítica, o epíteto (algo jocoso) de líder de uma religião urbana. Renato Manfredini Júnior, que hoje completaria 50 anos, não estaria confortável em nenhuma das duas condições. Mas, intimamente, teria orgulho de olhar para trás e perceber que ; assim como os ídolos John Lennon, Bob Dylan e Sid Vicious ; entrara para a história da música de seu país não sob o signo do continuísmo nem de amálgama, mas como um surpreendente, gigantesco, e ainda incômodo, ponto de exclamação.


Carlos Marcelo é editor executivo do Correio e autor do livro Renato Russo ; O filho da revolução (Agir, 2009)