"São pianos xifópagos", avisa a pianista Neusa França, com o bom humor de sempre. "Ele pegou dois pianos medíocres e fez um bom", completa Maria Emília Osório. A dupla nunca havia colocado os olhos sobre um piano duplo até a quarta-feira à tarde, quando subiram ao palco do auditório da Casa Thomas Jefferson para ensaiar o recital programado para hoje à noite, quando Maria Emília e Neusa tocam juntas no piano duplo construído pelo afinador Rogério Resende.
O instrumento, inédito no Brasil, precisou de três anos para ser construído. Na oficina que mantém o Museu Casa do Piano - uma coleção de 52 pianos -, Resende planejou e executou o sonho de construir dois pianos em um único corpo. A caixa de 3,23m de comprimento abriga dois pianos de cauda de marca Essenfelder recuperados na oficina do afinador. Resende investiu na experiência depois de deitar os olhos sobre a foto de instrumento semelhante idealizado por Gustave Lion e comercializado pela fabricante francesa Pleyel no fim do século 19. Tamanho e custo excessivo inviabilizaram o sucesso do piano duplo, que acabou restrito a poucos exemplares. A réplica de Resende é a primeira feita no Brasil.
O recital de hoje marca a estreia do instrumento. Neusa e Maria Emília prepararam um repertório variado com música popular e erudita. "Quisemos agradar gregos e troianos", avisa Maria Emília. Músicas escritas para dois pianos é algo bastante comum na história do instrumento. Transcrever repertório sinfônico para dois teclados era uma forma de possibilitar a execução das peças com frequência quando as orquestras não estavam disponíveis. "O piano é o único instrumento que pode reproduzir a orquestra", avisa Maria Emília. "Todas as sinfonias dos grandes compositores foram transcritas para dois pianos porque se dispunha de poucas orquestras e, para que sua música passasse à posteridade, os músicos não podiam depender das poucas orquestras", explica o pianista Dib Franciss, que ajudou a dupla a montar o repertório.
A primeira parte do recital traz Jesus alegria dos homens, de Bach, com arranjo do próprio compositor e a Fantasia em dó menor, de Mozart, cuja transcrição para o segundo piano leva a assinatura do norueguês Edward Grieg. A partitura original de Mozart é preservada e tocada por um dos pianos, enquanto o outro executa a criação de Grieg com uma leitura mais harmônica que dá novas sonoridades para a peça sem comprometer a espinha do classicismo do compositor.
De Mozart, a dupla também toca o Samba alla turca, criação do norte-americano J. P. Buttall para um dos maiores sucessos do austríaco. Já a Dança slava tem as partituras dos dois pianos escritas pelo tcheco Anton Dvorak. Gershwin, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Claudio Santoro e Leucona também estão no programa com arranjos originais. É em Prelúdio e Valsa, de Chopin, que entra a mão de Neusa França como compositora. Para as duas peças, enquanto Maria Emília executa a partitura original em um teclado, Neusa improvisa no outro. "Vou fazendo o que me vem à cabeça", diz a pianista, que assina também a valsa Primeiro beijo e o samba Exaltação a Brasília, criação mais recente feita em homenagem aos 50 anos da capital.
Neusa e Maria Emília são amigas desde os primeiros anos de Brasília. Vieram para cá na mesma situação: os maridos foram transferidos para a recém-nascida capital. Neusa, então ex-aluna de Magdalena Tagliaferro, nome mais importante na formação pianística brasileira entre os anos 1930 e 1960, foi uma das primeiras professoras de piano da cidade e deu aulas, inclusive, para Maria Emília. É da amizade de quatro décadas que brotam a confiança e o entrosamento da dupla no teclado do piano. "Para tocar junto é preciso conhecer muito bem o toque do outro", ensina Maria Emília.
DOUBLEPIANO RESENDE
Recital com Neusa França e Maria Emília Osório. Hoje, às 21h, no auditório da Casa Thomas Jefferson (SEP/Sul 706/906). Entrada franca