As dezenas de cadernos rabiscados com versos sempre ficaram guardadas bem longe das vistas do leitor. Primeiro em Natal, onde Gustavo de Castro nasceu e cresceu. Depois em Brasília, onde o escritor-poeta veio dar aulas. Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB), Castro ficava inseguro e envergonhado com os versos até descobrir os livros do italiano Italo Calvino. ;Não enquadrava, não me sentia enquadrado muito em nenhuma poética;, conta. ;Acho que ninguém se faz sozinho, a gente precisa de mestres que ensinem, deem o norte. Escrevo desde os 12 anos, diários, contos. Por uma questão profissional, a vida acadêmica me levou para fazer mestrado, doutorado, mas nunca abandonei a literatura. Mas os guardados poéticos estavam lá nos cadernos, achava um lixo que não valia nada.;
Calvino revelou ao poeta que seus escritos não estavam tão deslocados do mundo literário quanto acreditava. A meio caminho entre a prosa e o verso, Castro não encontrava diálogo com a produção literária brasileira. Além do italiano, descobriu também o argentino Roberto Juarroz. O encontro literário aconteceu há tempos, mas foi essencial para que o livro Poemas vis saísse do blog e dos cadernos envergonhados. ;Vi que era possível tentar um outro caminho que não encontrava muito na literatura brasileira. Não me identifico muito com a literatura nacional, é uma angústia;, diz Castro. ;Me identifico muito com os latino-americanos e italianos. Não sei se é tão necessário estar filiado a alguma poética, mas em última instância a gente acaba filiado;, confessa.
Mesmo assim, o poeta se mira em grandes exemplos da língua portuguesa. Poemas vis tem algo do brasileiro Augusto dos Anjos e do português Fernando Pessoa. ;Tentei fazer uma tradução livre, uma releitura da obra deles de forma geral. Voltar à verve literária poética, deixar mais livre, por isso o vis, que tem uma ideia de visual, de vis a vis, de vil, torpe, sem compromisso com o politicamente correto. E também não queria entrar muito nessa onda do marginalismo na literatura brasileira. Poemas vis é um exercício sem muitas pretensões.;
Despretensioso, mas com repercussão inesperada para o autor. Muitos dos versos do pequeno livro ; que não passa de 44 páginas em elegante (e econômica) edição da Casa das Musas ; já visitaram o blog do poeta. No entanto, foi no papel que fizeram sucesso, uma prova, para Castro, da longevidade do objeto livro. ;Comigo o blog tem funcionado muito como laboratório. Posto lá algumas coisas, depois fico morrendo de vergonha. Um ano depois imprimo todo o blog. Para Poemas vis imprimi um ano de postagem, retrabalhei todos os poemas , inclui alguns inéditos e publiquei o livro;, revela. ;Uma coisa que notei é que os leitores do blog não dialogavam. Acho que blog de poesia não faz muito sucesso, o livro rendeu muito mais. Ainda é preciso o suporte livro, ele tem uma repercussão diferente do suporte virtual, ele requer tempo, reflexão. Por enquanto;;
Azeviches e estanhos
E, por enquanto, Castro gosta de fazer livros. Com Luiz Martins, Marcelo Nunes e Florence Dravet, criou a editora Casa das Musas. Por ela, publicou o primeiro livro de poesia, Ossos da luz, e uma reunião de contos, Arvorecendo. Com Poemas vis, também lança Jornalismo literário, livro técnico sobre a escrita jornalística. Mas é na poesia que está concentrada a verve do escritor. Dividido em duas partes ; azeviches e estanhos ; o livro tem algo solar no meio de um universo que frequentemente se revela sombrio. Se prefere ;gargalhar desgovernadamente; a lidar com um mundo povoado de relinchos, urros e miados, como escreve em uma singela declaração de otimismo, também admite, em muitos versos, ser partidário de cenas sombrias. ;Às vezes, tenho receio de ficar sombrio demais e, para minha surpresa, algumas pessoas dizem que (este livro) está um pouco solar;, constata. Mas os azeviches e estanhos, ele admite, são nomes ligados à magia negra medieval. O primeiro, Castro usou para designar os poemas em prosa. O segundo, para a poesia pura. ;A prosa é característica minha, está presente no primeiro, neste e no próximo livro, Taos, uma seleção de poemas de 1998 a 2009.;
Resistência e arte
Gustavo de Castro fundou a Casa das Musas em parceria com os amigos Luiz Martins, Florence Dravet e Marcelo Nunes em 2004. Desde então, a editora com sede em Taguatinga já publicou 65 títulos dedicados a temas como poesia, literatura, espiritualidade e comunicação. Além de livros editados industrialmente, a Casa das Musas publica edições artesanais de apostilas geralmente destinadas a alunos da FAC graças ao equipamento de impressão instalado na casa de Luiz Martins. Publicar poesia é um ato de resistência da pequena editora.
Como profissional do mercado editorial, Castro costuma acompanhar as pesquisas sobre leitura e venda de livros no Brasil e ficou surpreso com o índice de leitura divulgado recentemente pelo Instituto Pró-Livro. Segundo os gráficos, a poesia está em quinto lugar na lista de livros mais vendidos, o que seria bom demais se fosse verdade. ;O índice de venda é baixíssimo. Se fosse quinto seria ótimo. Foi um erro metodológico, conversei com a pessoa que fez;, garante.
;O que acontece é outra coisa. Em Brasília existe um movimento poético muito forte. Por conta do FAC (Fundo de Apoio à Cultura), publicam-se 200 livros por edital, isso é uma coisa interessante. Claro, a qualidade merece toda uma reflexão, é uma discussão que não foi feita, acharam que simplesmente destinar dinheiro para edital valeria, mas acho que não;, diz Castro.
Poemas
; ;Ela não chorava
lágrimas, mas pedras de sal. E aquelas pedras foram caindo ao chão fazendo o barulho que faz a dor de mundo quando bate no peito. Os goles da angústia, o marulhar arrepiante da desgraça, sonavam nela qual fole de cego na estrada. Quando o homem sofre, disse ela, Deus sorri e gargalha!”
; Quem ama verdadeiramente não busca refúgio em ninguém.
Quem é essa gente desligada do essencial? Quem os que não jantam o azul e não lambem um pensamento por vez? Quem os que não aprendem um a um com os enganos? Quem os que não têm mil sonhos por segundo?
(Do livro Poemas Vis)
Mais poemas
; Quando a gente se abarrota de emoção, sacudido dos balanços do coração e das lágrimas, aí a gente pode encher a boca e dizer: nada de crise neste dia. Nada de crise nesta noite. Não nesta noite de lua cheia!
Nesta noite, apenas vestir as melhores emoções. E sair.
; Olhos amistosos de tão belo reflexo. O clarim do teu olhar anuncia o anjo rebelde. Teu rosto tem mais prismas do que espelhos: obscuro maná com o qual alimento a minha calma. Confortado, descanso meus c[ílios nos teus seios. Desenho a força dos gigantes porque tenho o teu Fogo. Tua luz celestial.
Ofegante língua inocente. Meu escaldafrio.
; A cortina de fumaça engravidou os dias nevados. O apito do trem trouxe o suspiro final. O dia nem pensava em nascer e o orvalho já chorava lágrimas por toda a criação.
Quando você partiu, todos foram embora também. Só ficou tristeza parada. Tristeza grávida de estação. De vez em quando, um silvo remoto içava a lembrança dos que não voltam nunca mais.
Quando a cortina de fumaça passou, tudo ficou vazio. Voltei então a me ver. O nada para me espelhar não necessitava de nada.
; Três formas de abaixar?
A primeira forma é abaixar para cheirar a flor. Fechar os olhos e apalpar a narina nas pétalas, semelhante a esfregar um vento noutro.
A segunda forma é abaixar a crista. "Menos, meu amigo, `menos;, que você não está com a bola toda."
A terceira forma é o exercício do abismo: de vez em quando, observar vendavais. Ficar de pé no nada, bem na beirinha. Depois, soprar bem muito: com os poros, a boca e os olhos. Só para ver o vento que sai de dentro da gente.