São controversas as origens do fado. Entre muitas versões, há quem diga que os portugueses o importaram do Brasil, apoderando-se da malemolência e do aspecto lascivo do lundu e transformando-o a partir do acompanhamento com a guitarra portuguesa. Independentemente da veracidade de tal versão, a cantora Maria João Quadros refaz com muita propriedade esse caminho em Fado mulato, um disco de fados formado a partir de composições de autores brasileiros, que está sendo lançado aqui pela Biscoito Fino.
Moçambicana de pais portugueses, Maria João é uma fadista veterana e foi escolhida pelo poeta português Tiago Torres da Silva para dar voz à ideia dele de entregar letras para que brasileiros musicassem. Chico César, Zeca Baleiro, Iara Rennó, Alzira EspÃndola, Ivan Lins, Pedro LuÃs, OlÃvia Byington, Swami Jr. e Francis Hime aceitaram a missão. Às composições deles, foram acrescidas Gota d'água, de Chico Buarque, e Amor alheio, chorinho de Ivor Lancellotti e Paulo César Pinheiro, que ganhou vernizes tais, que alguém jamais diria que ele não foi feito para ser cantando como Maria João o gravou. Ou seja, como fado.
"O chorinho pode ser um fado maravilhoso. O samba-canção e o bolero também podem, como o blues e a música árabe", disse a cantora, que afirma ter juntado no projeto duas de suas paixões: o fado e a música brasileira. Ela também revela que se tivesse gravado as músicas tal qual as recebeu dos autores, sem violão e guitarra portuguesa, este jamais seria um disco de fados. A transformação se deu pelas mãos dela, de Tiago - produtor do disco - e dos músicos.
Foi a mistura de ritmos que deu nome do álbum. Além do explÃcito namoro com a música brasileira, Tiago e Maria João aproximam o fado do tango em Gente vulgar (Tiago e Alzira EspÃndola) e da morna cabo-verdeana em Vais dizer adeus (Tiago e Chico César) - esta com participação de Tito Paris, um dos principais nomes da cena musical de Cabo Verde. OlÃvia Byngton e Francis Hime também integram a lista de convidados, fazendo dueto com Maria João nas músicas que cada um compôs com Tiago - Fado escravo e Eu hei-de amar uma onda, respectivamente.
No entanto, apesar das misturas, Fado mulato consegue se resolver com uma unidade que o torna belo e legÃtimo exemplar do gênero-sÃmbolo de Portugal, alinhado com a renovação por que ele passa atualmente, nas vozes de cantores como Mariza, António Zambujo e MÃsia. Contam para isso, além da beleza das composições - e da surpresa que algumas causam por não lembrarem em nada o trabalho corriqueiro de seus autores, como é o caso de Pedro LuÃs -, a voz rouca e a sensibilidade interpretativa de Maria João e o afinadÃssimo e delicado duelo de violões e guitarras portuguesas.
Outra trecho da música Fado escravo