Nascida em Cuba, criada em Cabo Verde e há oito anos radicada em Paris, depois de passar por países como Senegal, Angola e Alemanha, a cantora Mayra Andrade parece destinada a ser cidadã do mundo. Agora mesmo os ventos que sopram trazem-na em direção ao Brasil. Stória stória, seu segundo disco, acaba de ser lançado aqui, abrindo a possibilidade de ela realizar o desejo, expresso com veemência, de fazer shows em nosso país. ;Isso é uma chamada a todos os programadores de teatros e a quem gostar de música: quero muito ir cantar no Brasil;, anuncia ela, por telefone, de Lisboa. Mayra já fez apresentações em São Paulo, há cerca de dois anos, e no ano passado foi uma das atrações do festival Back to Black, no Rio, cantando ao lado de Mart;nália. Também gravou participação no disco Peixes pássaros pessoas, de Mariana Aydar. Mas foi a aproximação com o produtor Alê Siqueira que resultou no que pode ser seu cartão de apresentação ao público brasileiro: o álbum Stória stória. Cantora e produtor chegaram um ao outro por intermédio do pianista cubano Roberto Fonseca. ;Ele conhecia meu disco anterior (Navega, 2006) e me mandou várias músicas que produziu. Alê tem características que me interessam: versatilidade, elegância e criatividade;, explica. Siqueira também levou para o disco um time de músicos brasileiros de primeira grandeza, como Marcos Suzano (percussão), André Mehmari (piano), Jacques Morelenbaum e Lincoln Olivetti (arranjos de cordas e sopros, respectivamente). No entanto, se a aproximação profissional de Mayra com o Brasil é relativamente recente, como ouvinte, não. ;Gosto, escuto e canto (música brasileira) desde criança. Posso dizer que faz parte da trilha sonora de minha vida. Tem proximidade com a música de Cabo Verde, mas foi mais que isso, foi uma identificação pessoal;, diz ela. Tanta familiaridade com esse universo musical acabou rendendo comparações contestadas por Mayra, que canta em crioulo (1) cabo-verdeano e tem sua principal influência em ritmos como morna, coladeira e bandeira, típicos do arquipélago. ;Sofri com essa comparação sistemática quando falava de minha música, que é tradicional, mas ao mesmo tempo universal, contemporânea. As músicas cabo-verdeana e brasileira apenas têm referências e origens comuns. São primas;, esclarece. Tanto é que, apesar da maciça presença de brasileiros no disco, ela preferiu privilegiar no repertório as próprias composições (2) ; três ela assina sozinha e três em parceria ; e de autores como os cabo-verdeanos Nitu Lima (Turbulensa) e Kaka Barboza (Juana). Com uma agenda que inclui, até maio apresentações na França, na Alemanha, na Suíça, na Eslovênia e na Inglaterra ; o Brasil, portanto, apesar da vontade da cantora, terá que esperar mais um pouco ;, Mayra Andrade não vê nenhum empecilho no fato de cantar em uma língua compreendida por poucos. ;Digamos que o que chamam de world music, que a priori tem público menor, vendas menores, passa em todo lado, mesmo em escalas menores, e toca a qualquer pessoa. O público é mais aberto. Alguma vantagem tinha que ter em não ser uma rock star;, avalia a cantora. 1 - Nas ruas A língua oficial de Cabo Verde é o português, mas a língua nacional, falada nas ruas, é o crioulo cabo-verdiano (criol, kriolu). Cada uma das 10 ilhas do arquipélago tem um crioulo diferente. Em Stória stória, Mayra canta uma música em português (Morena, menina linda) e uma em francês (Mon carrousel), língua que ela fala desde os 6 anos. ;Se pudesse, cantava uma música em cada língua, mas aí faria uma salada russa (risos);. 2 - Criação Quem ouve o disco de Mayra Andrade e se encanta com músicas como Stória stória, Seu e Konsiénsia jamais imagina que tais canções são resultado de um processo doloroso de criação. ;Adoro compor, mas tenho uma relação estranha com a composição, tenho receio de encarar esses momentos de grande solidão. Sou um pouco indisciplinada, sem regularidade, não trabalho violão, tenho ideias, mas não sei tocar. Cada uma dessas músicas é fruto de uma viagem superdifícil, quase um parto;, confessa a artista. Ouça trecho da música Stória stória.
Crítica - Stória Stória **** Familiar e estranho O crioulo, língua em que Mayra Andrade canta, produz efeito interessante nos ouvidos de quem fala português mas não conhece o dialeto de Cabo Verde. Em breves momentos, você crê que entende o que ela canta, mas logo essa impressão se desfaz. Musicalmente, o efeito é o mesmo. Ora a música nos parece familiar, ora estranha. Stória stória passeia por ritmos fortemente marcados pela batida percussiva e ao mesmo tempo de uma leveza encantadora. E revela a riqueza musical de um lugar que, para a maioria das pessoas, se resume artisticamente à figura de Cesária Évora. O mais interessante é que a produção de Alê Siqueira preserva essa identidade cabo-verdeana, sem cair na tentação de ;traduzi-la para brasileiro;, ainda que Mayra Andrade se permita fundir a música tradicional de seu país com influências que vão do jazz à música cubana ou brasileira. O resultado é música contemporânea, moderna, mas com raízes bem fincadas. E acima de tudo tem a voz que flui natural, de timbre e beleza incomuns.