Num recorte arrojado, com a reunião de 18 filmes que refletiram um momento de crise na produção cinematográfica - "numa procura sem alvo", como descreve o crítico Cléber Eduardo -, a mostra Órfãos da Embrafilme chega, amanhã, ao Centro Cultural Banco do Brasil da capital. Produzidos entre 1990 e 1994, os títulos não figuram no verbete que conceitua a retomada da produção verde-e-amarela, mas demarcam descontinuidade na linha de montagem atrelada aos financiamentos da Embrafilme. "Eles ficam em limbo simbólico e histórico, quase na invisibilidade. Os filmes concentram reflexo e reação a um momento bodado do país", explica Cléber Eduardo, curador da atração do CCBB.[SAIBAMAIS]
Autor do ensaio "histórico-estético" cravado no catálogo da mostra (que soma textos do cineasta Carlos Reichenbach e do jornalista Pedro Butcher), o crítico de cinema pretende que a exibição sistematizada esboce, ao lado de debate com participações dos diretores Neville D'Almeida e Elisa Tolomelli, maior entendimento de uma conjuntura que, à época, pendeu para dispersão. "O fim da Embrafilme gerou perdas de dados históricos dos arquivos relacionados à economia de cinema. Já com relação às exibições dos longas em festivais, o clima crítico era de naufrágio do navio fantasma ou de um sebastianismo concentrado em autores como Nelson Pereira dos Santos e Reichenbach, ou seja, diretores de duas gerações de cinema, iniciadas e legitimadas nas décadas anteriores", comenta.
Oceano Atlantis, de Francisco de Paula" />Com fitas diferenciadas, em termos de ambições e ousadia, o ímpeto de propostas arriscadas domina o lote de 18 filmes, entre os quais Louco por cinema, Stelinha e Barrela. "O espectador deve se predispor à abertura, pelo tom de estranhamento atrelado aos filmes. O cinema desse período tinha isso de positivo. Eram filmes amargos, às vezes dissonantes com o rumo pretendido pelo país", comenta Cléber. O vigilante, filme do cultuado cineasta Ozualdo Candeias, com exibição em 9 de março, é representante desse nicho no eclético programa.
O curador e crítico aponta a dupla A rota do brilho e Oceano Atlantis, como exemplares do circuito alternativo a ser resgatado. "O primeiro é um policial C, na tradição da Boca do Lixo, e traz no elenco Alexandre Frota e Lilian Ramos, aquela amiga do Itamar Franco, famosa por ter aparecido em um palanque ao lado dele, de vestidinho de poucos centímetros e ausência de calcinha. O filme estreou dias após o episódio carnavalesco, na popular sala paulistana do Cine Marabá", conta. Parelho nos traços de esquisitice, Oceano Atlantis é lembrado por ter a ação disposta no fundo do mar, com a Dercy Gonçalves subutilizada como uma "coadjuvante silenciosa". "Na memória, ele permanece como dos filmes mais bizarros do período", sentencia o crítico.
Muitas vaias
Outro elemento histórico chega a reboque da polêmica exibição, em Brasília, da refilmagem de Matou a família e foi ao cinema (em 1991, por Neville D'Almeida). "Ele viveu o momento da crise, já como um 'autor' (iniciado em outro período) que passou, pela primeira em vez no Festival de Brasília, com vaias generalizadas. Em parte, por causa da recusa ao filme (alvo de boicotes) e ao espírito de avacalhação dele, e, noutro extremo, porque a estrela do filme, Claudia Raia, tinha apoiado o Fernando Collor", avalia.
Cléber Eduardo acredita que a atual revisão dos filmes selecionados possa até reclamar bom humor, "mas, na época da exibição, havia uma vergonha de alguns desses filmes". O quadro de desgoverno também encontrou vazão para risos, como no episódio do lançamento, no crítico ano de 1991, do longa O escorpião escarlate (inserido na mostra do CCBB): sem dinheiro para a distribuição, o diretor Ivan Cardoso "lançou" a fita, do sexto andar do Hotel Nacional, durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. "A exorcização desse subdesenvolvimento veio com Carlota Joaquina, que sapateia no país, antes de uma nova fase: a da retomada e de Fernando Henrique Cardoso", conclui.
Órfãos da Embrafilme
Centro Cultural Banco do Brasil (3310-7087). De amanhã a 14 de março. Sessões de terça a domingo, às 15h30, 18h30 e 20h30. Amanhã, excepcionalmente, a sessão das 20h30 será substituída por debate. Ingressos, R$ 4 e R$ 2 (meia). Não recomendado para menores 16 anos.
Na tela
Rádio Auriverde (dias 5 e 11)
"Talvez seja dos meus mais polêmicos filmes. Foi selecionado para o Festival de Brasília, mas houve uma pressão louca para tirá-lo da competição. Na noite de exibição, tive que entrar cercado por seguranças, pois 300 ex-pracinhas e outros protestantes contra o filme e querendo me agredir. Tive certa dificuldade de colocar o filme em cartaz, diante das manifestações. Mas, onde entramos com o filme, ele obteve sucesso de público. Naquela época, foram feitos apenas mais dois ou três filmes nacionais, e o meu foi um deles. Rádio Auriverde é um filme de resistência, quando o cinema brasileiro estava ameaçado pela falta de recursos. Depois que houve intervenção na Embrafilme, não haviam me pagado e só fui receber, agora, 19 anos depois. Na época, vendi até apartamento para terminar o filme. Ele rendeu duas teses de doutorado e, ainda hoje, é o único filme brasileiro sobre a Força Expedicionária que não é chapa-branca. Ele quebra tabus, - um filme destemido, com respeito e amor aos heróis que seguiram para a Europa despreparados, com roupa de verão. Há uma crítica à forma como o Brasil se apresentou perante as tropas aliadas, na Itália. Mescla humor cáustico à tragicomédia"
Sylvio Back, diretor
Alma corsária (também nos dias 5 e 11)
"O longa foi feito com o Prêmio de Incentivo ao Cinema (SP), numa primeira tentativa de fazer a produção nacional retornar. A tal retomada começa mesmo com o A terceira margem do rio (de Nelson Pereira dos Santos), o primeiro de uma safra a chegar, após aquele vácuo criado pelos anos Collor. Ao lado do filme do Nelson e de Perfurme de gardênia e Capitalismo selvagem (todos incluídos na mostra do CCBB), Alma corsária impulsionou a retomada. Fazê-lo foi um calvário, pois, com a inflação galopante, tivemos 40% do orçamento previsto. A receptividade do filme, no Festival de Brasília, foi uma catarse pública. Foi o melhor momento da minha vida, diante de uma enorme receptividade. Alma corsária foi o primeiro filme, nos anos 1990, a retratar um período traumático da história brasileira. As pessoas saíram do cinema e se emocionaram, por causa do sentimento incubado há muitos anos. Foi um filme realmente autobiográfico que fiz, antes de mais nada, pra mim, independentemente do respeito da crítica ou do potencial de público. Coloco ele, como um divisor de águas, ao lado do Lilian M - Relatório confidencial (1974)"
Carlos Reichenbach, diretor
Saiba mais
Ascensão e queda
Com caráter de economia mista, a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) foi criada em 1969, tendo sido dissolvida em 1990. Sempre condicionada ao investimento estatal, ela enfrentou resistência inicial da classe, por causa do descaso do governo militar, que não ouviu os cineastas à época da implantação. Depois de uma reestruturação, em 1973, o órgão foi inserido no processo de distribuição de filmes no Brasil, num período em que foram viabilizados mais de 80 longas. Com aumento de capital, advindo da gestão de Roberto Farias, houve prosperidade na concentração das atividades industriais e comerciais. Nesta época, fortalecida a visibilidade dos filmes nacionais no exterior, e com poder de fiscalização da cadeia exibidora, a empresa sofreu indisposição junto à parte da classe empresarial.
Sob o impacto da recessão, no começo dos anos 1980, e endividada, a Embrafilme vagou em cenário lúgubre. Um enxugamento no quadro e relativo sucesso de obras como Eu sei que vou te amar e Cidade oculta deram sobrevida ao órgão. Com as leis de incentivos culturais suspensas pelo governo Collor, a Embrafilme sucumbiu à exigência de competir com produtos estrangeiros.