Com seu ritmo sossegado de cidade do interior, rio murmurando embaixo de velhas pontes, amplos quintais, paisagem de serras e serestas (injetando um romantismo incurável), Cachoeiro do Itapemirim, no EspÃrito Santo, legou ao Brasil três grandes artistas: Rubem Braga, Roberto Carlos e Sérgio Sampaio. Contudo, Sampaio é uma espécie de Roberto Carlos à s avessas ou de Rubem Braga em versão ácida e dramática: "Tudo cruel, tão sem beleza/ Doce de sal, lágrima presa/ O que eles falam não se deve nem ouvir/ Verbo mentir/ Menino é bom ficar de olho aÃ". Ele estourou nas paradas com o samba rasgado Eu quero botar o meu bloco na rua, em 1972, vencedor do Festival Internacional da Canção, graças à defesa apaixonada da presidente do Júri, a cantora Nara Leão. O "bloco" vendeu 500 mil cópias de um compacto simples e tornou-se uma espécie de manifesto popular pela redemocratização do paÃs. Mas Sampaio não aguentou a barra do sucesso, jogou tudo para o ar e optou por uma carreira completamente à margem dos esquemas da grande indústria fonográfica; "Fui tratado como um louco, enganado feito um bobo/ Devorado pelos lobos, derrotado sim/ Escapei desta quadrilha e hoje estou aqui/ O pior dos temporais aduba o jardim", cantou, autobiograficamente, em Ninguém vive por mim. Sérgio morreu de cirrose em 1994, mas, apesar da carreira errática e marginal de "boêmio da lua/ doido que não se situa", deixou um rico acervo de composições e conquistou um grupo seleto de fãs, nos quais se incluem Zeca Baleiro, Tom Zé, Chico César e João Bosco. Agora, acaba de ser lançado o CD Hoje não!, com 12 canções do compositor capixaba, interpretadas por Juliano Guache, sobre base de violões do Duo Zebedeu, formado por Júlio Santos e Fábio Carmo. No fim do mês de março, o trio desembarca na cidade para uma série de shows e para gravar um clipe com uma das faixas do CD, intitulada BrasÃlia, composta por Sampaio durante uma passagem de três meses pelo Planalto Central. O repertório do CD abrange várias fases da carreira do compositor capixaba, incluindo canções dos três LPs solo lançados por ele, mas também de gravações caseiras. Do primeiro LP de Sérgio, uma das mais contundentes crônicas sobre os tempos de sufoco e repressão do regime militar instaurado a partir de 1964, figuram Não tenha medo e Filme de terror . A belÃssima Cruel já havia sido gravada por LuÃs Melodia. O CD Hoje não! foi produzido por João Moraes, músico, jornalista e primo de Sampaio. João era mais novo que Sampaio e quando procurou o primo para gravar um disco recebeu a notÃcia de que ele havia morrido: "Foi uma paulada. Mas participei da produção do disco Balaio do Sampaio e tive acesso a inúmeras gravações inéditas do Sérgio, feitas em gravador, vÃdeo ou fitas cassetes. Parte deste material foi utilizado no CD póstumo "Cruel", organizado pelo Zeca Baleiro. Mas ainda existem cerca de 40 canções inéditas do Sampaio." Ouça trecho da música Cruel, de Sérgio Sampaio As canções do CD Hoje não! têm algo do clima de seresta de Cachoeiro do Itapemirim, mas com o marcante acento dramático que Sampaio imprimia em sambas, choros, rocks, blues e baladas. Não foi nada difÃcil para o grupo gravar o CD, pois ele passou dois anos na estrada com o show Tangos e outras delÃcias, produzido por João Moraes. "Ninguém passa incólume por Sérgio Sampaio. Quem ouve uma penca de canções dele vira fatalmente sampaÃsta", aposta João. Letras das músicas Filme de Terror Hoje está passando um filme de terror Na sessão das dez um filme de terror Dentro da folia um filme de terror Dura o ano inteiro o filme de terror... Não tenha medo Suje os pés na lama e venha conversar comigo Chore, esqueça o drama e venha aliviar o amigo Vem não tenha medo não, a barra pode aliviar ou não... Homem de trinta Tenho tomado café da manhã Barra pesada não, muito obrigado Tenho levado uma vida sã... BrasÃlia Quase que ando sozinho por todos os bares,/ frequento lugares, namoro suas filhas, BrasÃlia./ E agora posso dizer que começo a voar sossegadamente em seu avião./ E mesmo com o ar desse jeito tão seco/ consigo cantar no seu chão./ Quase que me sinto em acas em meio a suas asas./ E dáblius e eles e eixos e ilhas, BrasÃlia./ Cidade que um dia eu falei que era fria./ Sem alma, nem era BrasÃlia./ Que não se tomava café numa esquina, num papo com quem nunca viu; Sei que preciso aprender para saber. E conhecer BrasÃlia/ Ver o que há, Paranoá. Lago de sol, noite, lua. O olho do amor desconhece armadilha./ Assim ver BrasÃlia. Quase me sinto bem distraÃdo em suas quadras, tão bem arrumadas com suas quadrilhas, BrasÃlia./ Concreto plantado no asfalto do alto, o céu do planalto onde estou, aqui na cidade dos planos./ Conheço um cigano que não se enganou./ Sei que preciso aprender./ Quero viver para saber, e conhecer BrasÃlia.