Nahima Maciel
postado em 23/02/2010 07:00
De ingênua, Anita Malfatti nada tinha. Ao contrário, sabia muito bem o quanto podia chocar a sociedade paulistana da década de 1910 com retratos de uma boba deformada ou de um homem de terno amarelo e traços expressionistas. Quando voltou dos Estados Unidos, depois de anos de estudo fora do país patrocinada por um tio, Anita trouxe um conjunto de pinturas nada acadêmicas.Estimulada por intelectuais como Mario de Andrade numa São Paulo provinciana, montou exposição com quadros como A boba e Homem amarelo. Deixou de fora o Nu cubista porque sabia o quanto a sociedade de sua cidade natal estava distante do modernismo das vanguardas europeias com as quais tivera contato durante anos de estudo na Alemanha. Mesmo assim, Anita despertou a ira de alguns conservadores e foi atacada sem reservas pelo escritor Monteiro Lobato, autor de crítica que influenciaria boa parte da produção posterior da pintora.
Depois de 1917, Anita enveredou por vários caminhos. Podia tanto dar vazão à sua eloquência vanguardista quanto se retrair no manejo de um pincel acadêmico e convencional. A história é conhecida. O que pouco se viu até hoje foram os fatos contados com quadros. Só isso já é suficiente para uma visita a Retrospectiva Anita Malfatti ; 120 anos, em cartaz a partir de hoje no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) graças à iniciativa da curadora Luzia Portinari, que foi buscar em 70 coleções públicas e privadas as 120 pinturas e desenhos que retratam todas as fases da pintora paulistana.
Anita foi uma espécie de catalisadora das ideias que alimentaram o modernismo nos anos 1920. Chocou parentes e acadêmicos com ideias pictóricas expressionistas, mas encontrou um grupo de intelectuais liderados por Mario de Andrade ávidos pela vanguarda moderna e bastante cansados do academicismo que reinava na São Paulo da época. Empolgou os jovens artistas aflitos por novidades, mas também sucumbiu às críticas. Ganhava broncas de Mario de Andrade quando resolvia pintar flores, retratos e paisagens.
A teimosia a levava a responder que fazia aquilo porque era capaz de fazer bem qualquer coisa. E era mesmo. Até nas cenas das festas caipiras dos anos 1930 Anita se destacava. ;Ela viveu muito tempo sob dois focos: a família de um lado e o Mario de Andrade de outro. Ele criticava muito e dizia que ela não devia copiar os outros, devia tomar um caminho só seu. A família queria que ela fizesse uma pintura mais comportada;, conta Luzia.
Sobrinha de Cândido Portinari, a curadora se envolveu com a obra de Anita há 10 anos, quando escreveu o roteiro do documentário Anita Malfatti. Durante um encontro com amigos, há pouco mais de 10 anos, percebeu o quanto a obra da artista andava esquecida e decidiu trabalhar para trazer a modernista de volta à cena. Em 2007, Luzia publicou Anita Malfatti ; Tomei a liberdade de pintar a meu modo. Para a retrospectiva, cuja estreia em Brasília comemora os 50 anos da capital, incluiu os famosos A chinesa, Farol, A boba e Homem amarelo, obras conhecidas e bastante reproduzidas, mas também trouxe muitas flores, retratos e as cenas das festas de interior. ;A trajetória dela é muito irregular porque ela ia, vinha, voltava. Tentei fazer a exposição de maneira didática e cronológica, começando do primeiro quadro, Burrinho correndo (1909), em que assinava ainda como Babynha;, diz Luzia.
; Para saber mais
À mão esquerda
Anita Malfatti era descendente de italianos e norte-americanos. Nasceu com um defeito na mão direita. Braço e mãos atrofiados a obrigaram a aprender a desenhar e pintar com a mão esquerda. Anita teve aulas de pintura durante toda a vida e foi mandada para a Europa ainda na adolescência. A intenção do tio que patrocinou os estudos ; a mãe era viúva e professora de pintura ; era oferecer à menina a possibilidade de uma profissão. A família queria transformar Anita numa professora de pintura para moças e senhoras, situação convencional demais para o que a artista apresentou quando retornou ao Brasil. A exposição de 1917 fez com que passasse a integrar o grupo de artistas e escritores responsáveis pelo modernismo, movimento que marca a entrada do Brasil na cena cultural do século 20. Ao lado de Mario de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e Portinari, Anita produziu o que havia de melhor na pintura nacional da época. A artista morreu em 1964, aos 75 anos.
; Três perguntas para Luzia Portinari
O que Anita Malfatti representou dentro do grupo modernista?
O estopim de tudo. Era considerada praticamente o elemento mais importante porque os outros estavam começando. Tarsila (do Amaral) era ainda acadêmica na época, estudava com Pedro Alexandrino, com quem Anita foi, inclusive, estudar depois. Ela tinha que treinar o tempo todo, imagina uma pessoa destra ter que desenhar e pintar com a mão esquerda. A exposição de 1917 foi o catalisador desse movimento coletivo que apanhou os intelectuais particularmente do Rio e São Paulo e que culminou com a Semana de 1922. A exposição dela serviu para juntar esse pessoal. O (Emiliano) Di Cavalcanti era caricaturista de um jornal e levou os amigos intelectuais para conhecer Anita. Eles a estimularam para que ela realizasse a exposição de 1917. Já existia, de certa maneira, um movimento nesse sentido. O Mario de Andrade, que ainda era muito novo, mais tarde reconheceu que foi a exposição dela que abriu um novo horizonte, a partir disso ele começou a se informar.
É correto dizer que, depois da exposição de 1917, ela retorna a um certo academicismo?
Ela fazia isso, mas de birra. Todo artista tem coisas que ele faz e nem ele gosta. Uns jogam fora, outros guardam. Todo artista, uma vez pelo menos, cede às contingências do mercado para sobreviver. A não ser o artista que não vive disso, que pode se dar ao luxo de só fazer o que quer, o que não quer dizer que só vá fazer coisa boa.
O quanto a crítica de Monteiro Lobato realmente mudou a direção da pintura de Anita Malfatti?
Na exposição de 1917 ela apresentou muita coisa considerada vanguarda, mas também muita coisa que não era. Ela já tinha mudado antes de Lobato por causa das críticas da família, talvez. Assim que ela chegou no Brasil e mostrou o que tinha feito nos Estados Unidos foi uma crítica geral. Ninguém entendeu, principalmente o tio, que foi quem pagou os estudos. Não se sabe se por causa da família ou não, mas ela começa a mudar aí e isso coincide com o movimento de retorno à ordem que já estava acontecendo na Europa, nos Estados Unidos e em determinados círculos. Lógico que a crítica do Monteiro Lobato deve ter marcado muito, mas acho que ela ficou mais famosa porque ele foi pego pelo pessoal da Semana de 22 como o inimigo. Todo movimento tem que ter um inimigo e um mártir. O inimigo era Lobato e ela era a mártir. Ela assumiu esse papel.