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Coautora de livro premiado no prestigiado Gourmand World Cookbook Awards, a chef paulista relata sua paixão pela culinária nacional


A chef Ana Luiza Trajano, 31 anos, construiu bem o próprio caminho. Herdeira de uma grande rede de lojas de departamento, casada com o chef francês Yann Corderon, administradora e formada em gastronomia na Itália, ela surpreendeu a todos e a si mesma. Nada de apostar na culinária internacional ou manter o negócio da família. Ela buscou na memória as receitas das avós e os temperos que traziam boas lembranças para escolher o que queria fazer para o resto da vida. A paulista resolveu investir nas raízes da culinária brasileira.

Com o projeto Sabores do Brasil, Ana Luiza percorreu durante um ano todas as regiões do país em busca da culinária tradicional e de ingredientes que traduzem a história da cozinha regional. Foram visitadas 47 cidades cheias de temperos e receitas de cozinheiros locais, tudo registrado pelo fotógrafo Alexandre Schneider. O resultado foi mostrado nas páginas de Brasil a gosto (Editora Melhoramentos), que recebeu, no começo da semana, o prêmio de melhor livro na categoria fotografia no prestigiado Gourmand World Cookbook Awards.

Depois de impressa, a pesquisa tomou a forma de cardápio. A chef inaugurou em 2006 uma casa no bairro dos Jardins, na capital paulista, com o mesmo nome do livro. O preparo e a tradição de pratos populares foram valorizados com leveza aliada à sofisticação da alta gastronomia. Entre as opções, picanha na chapa com farofa de pupunha, batata frita e arroz branco; pescada cambucu com vatapá; canapé de banana-da-terra; bife fino de porco com molho de jabuticaba, purê de inhame e banana-da terra-grelhada; biju de siri e cocada de forno. O restaurante já foi apontado pelo jornal americano The New York Times como referência da gastronomia brasileira.

Um dia depois de voltar da Europa, no intervalo do trabalho na cozinha do Brasil a gosto, Ana Luiza conversou com o Correio. Ela deve visitar Brasília no fim deste mês e, como sempre faz quando viaja pelo país, pretende descobrir novos ingredientes. Durante a conversa, a chef revelou que, como boa brasileira, ama a combinação de arroz, feijão, bife acebolado e batata frita e confessou que é apaixonada pela gastronomia do cerrado.


Como surgiu essa paixão pela culinária brasileira?
Eu gosto de cozinhar desde pequena. Quando eu vim para São Paulo, fiz alguns cursos, mas na época em que terminei o 3; ano (do ensino médio) não tinha nenhuma faculdade que formasse um profissional de cozinha. Então, eu fiz administração. Quando me formei, fui fazer um curso de gastronomia na Itália. Escolhi trabalhar com a culinária brasileira por causa da minha família. Tenho avós mineiros e cearenses, e cresci em Franca (SP), então os ingredientes do Brasil não poderiam deixar de ser minha maior referência.

Você dedicou o livro a sua avó Zuleide. Como ela influenciou o seu jeito de cozinhar?
Eu tenho uma ligação muito forte com o Brasil e ela influenciou esse aspecto da minha vida. Minha avó é cearense e tem muito orgulho disso. Com ela, aprendi a fazer pratos como o pirão de ossobuco, a tapioca e a carne de sol. Ela tem 93 anos e, até hoje, a gente vai para a cozinha juntas.

Como foi a pesquisa para montar o cardápio do seu restaurante?
Na verdade, o meu propósito de vida é divulgar a cultura brasileira por meio da gastronomia. O projeto Sabores do Brasil começou muito antes do restaurante e, com ele, veio o livro. Como a gente tem pouco material sobre a gastronomia brasileira, eu viajei muito para descobrir as receitas. Minha pesquisa é muito empírica, de ir ao lugar e ver quais são sabores de lá. A primeira viagem foi em 2004 e durou um ano. Fui para todas as regiões do Brasil e fiz um primeiro apanhado. Agora, pelo menos duas vezes por ano, eu viajo para pesquisar mais.

Existe alguma região onde a gastronomia tem mais força?
Cada uma tem sua fortaleza. No Norte, são os peixes, no Nordeste, as pimentas. Cada local tem a sua riqueza, não dá para generalizar. Existem lugares que causam um pouco mais de curiosidade, pelo inusitado, como a Amazônia. O desconhecimento faz com que as pessoas achem que a culinária de lá é mais rica, mas a do cerrado é tão rica quanto, em relação às frutas e aos peixes.

E a senhora passou pela região do Distrito Federal durante a pesquisa?
Eu fui a Goiás e já fiz um cardápio aqui no restaurante em homenagem ao Centro-Oeste. Já visitei Pirenópolis duas vezes. Eu adoro o cerrado, mas acho que ele é mal divulgado. Ele tem muita riqueza de frutas, peixes e castanhas. É maravilhoso! Eu uso o baru na minha cozinha há mais de quatro anos. Mesmo as preparações feitas na região são novidades. Acho também que a comida goiana é bem próxima da mineira, a doçaria toda. Eu sou apaixonada pela região e sou muito defensora do cerrado. Eu devo ir para Brasília no próximo dia 24 para fazer um almoço, mas ainda não sei o lugar.

E como foi colocar toda essa pesquisa em prática?
Na verdade, foi um ano só de teste de cardápio. O meu desafio era fazer uma culinária que fosse alicerçada na tradição, mas que tivesse uma boa apresentação e uma leveza nos pratos. Hoje, eu tenho um cardápio-base e, a cada três meses, monto um menu especial inspirado em uma região brasileira.

A senhora imaginava que poderia receber um prêmio do nível do Gourmand?
Foi muito emocionante. Maior que o reconhecimento pessoal foi o reconhecimento do Brasil. O nosso país é que foi reconhecido lá fora. Estar em um evento prestigiado, com outros chefs renomados, dá um gancho para divulgar a nossa cultura.

A senhora acha importante resgatar as técnicas que estão ficando para trás? Da panela de barro, do cozimento de horas e horas;?
Eu acho que o que não se pode perder são as receitas e, dentro delas, estão as técnicas de cozimento. Hoje em dia, a tecnologia ajuda bastante. Então, por exemplo, eu sou superadepta da panela de pressão, mas existem alguns cozimentos que pedem a utilização de um utensílio específico. Existem algumas coisas que não podem ser mudadas, sabe? Nada supera a moqueca feita na panela de barro, específica para esse prato. Acredito que a poesia não está só na ferramenta, mas no respeito pela receita. Você pode cozinhar em baixa temperatura durante horas que dá um pouquinho daquela coisa que se fazia lentamente no fogão a lenha. Algumas precisam se adaptar. O profissional de hoje tem de saber traduzir, sem perder a essência. O sabor não pode ser perdido. O leitão à pururuca tem de ter o mesmo sabor, ainda que o utensílio seja diferente. Está aí o desafio do cozinheiro. Com certeza, os usos e os costumes não podem ser perdidos, precisam estar registrados no texto. Não podemos esquecer do sabor e da tradição dos pratos.

A senhora acha que, nos últimos anos, o brasileiro começou a se interessar mais pela própria gastronomia?
Faz uns cinco anos que o Brasil entrou na moda, graças a Deus, dentro do próprio Brasil. Antes era cafona comer comida brasileira fora de casa. Você saía para jantar e escolhia restaurantes italianos e franceses, principalmente em São Paulo e nos grandes centros do país. Agora, temos uma valorização maior dentro do Brasil da nossa gastronomia.

Se a senhora tivesse de escolher uma receita que é a cara do Brasil, qual seria?
Eu acho que, na verdade, o ingrediente que é a cara do Brasil é a mandioca. É o alimento que une o país todo. Escolher uma receita só é muito difícil. Porque, se você escolher a moqueca, não está representando as regiões como um todo. O arroz e feijão não tem no país inteiro, porque na Amazônia não é costume. A única coisa que une é a mandioca. A farofa, por exemplo, a gente encontra no país inteiro.

"Existem algumas coisas que não podem ser mudadas, sabe? Nada supera a moqueca feita na panela de barro, específica para esse prato. Acredito que a poesia não está só na ferramenta, mas no respeito pela receita"