Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Livro da escocesa Ali Smith mostra um duro retrato da existência humana

Há em cada hotel espalhado pelo mundo uma pungência de vida sem igual. Por reunir histórias tão distantes, mundos tão diferentes, os hotéis são palcos ideais das relações humanas e, por tabela, da ficção.

Empenhados na tarefa de agradar à diversidade de hóspedes, as redes hoteleiras são todas padronizadas e impessoais. Quartos e saguões são dotados de uma frieza que acaba, por contraste, evidenciando ainda mais os sentimentos dilacerantes que se cruzam nos corredores. Essa é uma das conclusões imediatas da leitura do romance Hotel Mundo, da escocesa Ali Smith. Publicado originalmente em 2001, o livro só agora foi editado no Brasil.

Finalista do Booker Prize - principal prêmio literário da língua inglesa - a narrativa de Ali é um duro retrato da existência humana. Soturnos, os personagens, cada qual com seu drama, são imperiosamente parecidos em um plano mais geral: todos cúmplices na mesquinharia cotidiana da vida.

Por meio de um texto inventivo, a autora narra com habilidade o fluxo de consciência dos protagonistas. O ímpeto do sentimento, descrito como vem à mente, ainda é - prova esse belo romance de Ali - a melhor maneira de mergulhar com clareza nos espaços arcanos da subjetividade. Por vir assim às páginas, com tamanho grau de espontaneidade, o sentimento adensa e dificulta a leitura. Não há subterfúgios formalistas aos desejos enfurecidos que atropelam parágrafos e não respeitam vírgulas.

A opção pelo fluxo de consciência é respaldada inclusive por um detalhe de diagramação. As margens à direita das páginas estão desalinhadas. Isso pode até incomodar o leitor, pois o priva certas vezes de uma leitura plácida e contínua. Mas, como dito, prevalecem no romance os recônditos fulminantes da subjetividade, anárquicos por natureza.

Move a trama, passada na Grã-Bretanha, uma tensa relação social entre os empregados e os hóspedes do Hotel Global, criado por Ali. A linha de partida - uma jovem camareira que morre em um bizarro acidente de trabalho envolvendo um elevador de pratos - revela por si só o comprometimento político da obra, desencadeador de toda a série de complicações emocionais seguintes.

A partir daí, sua irmã mais nova, traumatizada por essa primeira grande perda, na luta para compreender a morte, fica tortuosamente mórbida. Passa os dias na frente do hotel ruminando porquês. Do outro lado da rua, sentada na calçada, uma jovem mendiga pede esmola aos pedestres, quando, ao anoitecer, a recepcionista do hotel, movida por arriscados sentimentos de solidariedade, oferece a ela um quarto para pernoitar. Enquanto isso, solitária em uma das centenas de suítes do Global, uma jornalista assiste, entediada, a um filme pornô.

Apresentados em capítulos independentes (inicialmente não há nenhuma ligação entre as histórias), os protagonistas são revelados em sua vastidão emocional, para só depois se encontrarem e, juntos, dar forma a algum sentido.

As visões de mundo e os valores dessas pessoas são diferentes, e Ali parece ter escolhido o universo agregativo de um hotel (global) para confirmar a tese de que, isoladas as tensões por diferenças sociais e culturais, permanece como característica comum uma fragilidade existencial que a todos flagela.

Dando consistência à complexidade narrativa do livro, está a ótima tradução de Caetano W. Galindo. A naturalidade e fluidez das descrições fazem esquecer que o original se passa em língua estrangeira.