Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

O que eles pensam - Ian Guest

Ian Guest é um nome mágico para os músicos brasileiros. Wagner Tiso, Toninho Horta, Jorge Hélder, Cássia Eller, Rafael Rabelo e Turíbio Santos são alguns artistas que já estudaram ou se consultaram sobre questões de harmonia com Guest. Ele nasceu na Hungria, chegou ao Brasil com 17 anos e ficou impressionado com a musicalidade do povo brasileiro. Participou do grupo inicial que fundou a Bossa Nova, no Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro. Era amigo e parceiro de Raul Seixas. Ele é uma das atrações do Curso de Verão da Escola de Música há mais de 20 anos. Provocador, libertário e anárquico, Guest defende que é preciso fazer música antes de estudar música. Como se deu o seu encontro com a música? Eu não tive a oportunidade de escolher a música. Sou filho e neto de músicos. Comecei a aprender música aos seis anos de idade, quando morava na Hungria. A Hungria é um país que constituiu uma magnífica tradição de educação musical, graças aos ensinamentos e à ação do mestre Zoltan Kodály. Ele musicalizou toda a Hungria, do carteiro ao engenheiro. O meu pai estudou com ele. Kodály dizia que a música é um direito do cidadão e a educação musical começa nove meses antes de a criança nascer. Na Europa, o resgate da música folclórica se deu antes da chegada da indústria cultural de massas. Qual a importância da harmonia na música? Não há nome mais bonito do que harmonia. Ela é que dá o sentido de cooperação da música, que é constituída por melodia, ritmos, timbres. O que é a música para o senhor? Antes de tudo, é uma linguagem para me comunicar com os companheiros terráqueos. Nenhuma outra tem o poder de tocar tão forte e tão fundo. A música é um modo de viver. E Brasília, o que percebe sobre a cidade, a partir do contato com os alunos no Curso de Verão? Estou impressionado com o trabalho desenvolvido pelo Clube do Choro em Brasília. Existem muitas pessoas de talento na cidade: o Paulo André, o Fernando César, o Rafael dos Anjos, Geniel de Castro, o Jaime Ernest Dias. Brasília é uma capital diferente de outras capitais. Aqui, você tem os cearenses, os pernambucanos, os paraenses, que continuam cultivando os seus valores culturais nas cidades-satélites. É diferente de outras cidades que absorvem e homogeneizam. Graças a este Curso de Verão de Brasília eu conheci o Brasil inteiro aqui. Como vê o estudo e o ensino da música no Brasil? Vejo um problema muito sério. As pessoas chegam até a música por dois caminhos: a prática acadêmica ou os botequins e esquinas da vida. Há muito talento, mas as pessoas que percorrem os labirintos acadêmicos raramente são criativas porque não vêm do quintal. A música deveria ser a língua materna. Seria preciso começar a fazer música e depois estudar. O conhecimento acadêmico é um complemento da experiência espontânea. Por isso, em meus cursos, procuro injetar autoestima nos alunos. É a base da criação. É no estado de alegria infantil e juvenil que temos vontade de brincar, descobrir, experimentar e inventar. E qual é o problema das escolas de música? Elas estão preocupadas com a qualidade. Mas a criatividade tem pouco a ver com a qualidade. A preocupação com a qualidade amarra todo o processo criativo. A beleza está nos olhos de quem vê. Caetano Veloso escreveu em uma de suas letras que o Brasil pode ser absurdo, mas tem um ouvido musical que não é normal. O que o senhor acha desta visão? Concordo plenamente. Eu cheguei ao Brasil aos 17 anos e fiquei impressionado com a criatividade dos músicos populares brasileiros. As pessoas que moravam nas favelas, passavam fome, mas tinham um rádio para ouvir música. No Brasil, a música popular é mais importante do que a música erudita porque se alimenta da tradição folclórica. Eu ficava impressionado como as pessoas cantavam o hino nacional de maneira afinada. Na Hungria, as pessoas desafinam muito quando cantavam o hino nacional. Nos países da Europa há uma separação drástica entre música erudita e música folclórica. Por isso, quando cheguei ao Brasil, deixei de ser um músico de orquestra e passei a me dedicar à música popular. Qual a singularidade da música brasileira? É uma expressão oral e corporal, envolvendo dança, música, voz. No Brasil, qualquer objeto pode se tornar uma fonte sonora. O brasileiro faz música com caixinha de fósforo, prato ou panela. O Hermeto Pascoal realizou experiências fantásticas nessa vertente. E como foi o seu contato com a música popular brasileira? Participei do grupo inicial que fundou a Bossa Nova, no Beco das Garrafas, com o Clube de Jazz e Bossa, em Copacabana. Lá, tive a oportunidade de entrar em contato com Tom Jobim, João Gilberto, Vinicius de Moraes e Luiz Eça, entre outros. Eu era muito jovem e não tocava muito bem. E, ainda por cima, quando ouvia o Tom Jobim tocar piano, ficava humilhado. Mas, depois, tomei coragem e fundei um conjunto para tocar. Em seguida, fui trabalhar com a produção de discos. Produzi o disco Sociedade cavernista, do Raul Seixas com o Sérgio Sampaio, que fechava a última faixa com o som de uma descarga de privada. Como se tornou possível o seu encontro com Raul Seixas? O senhor, com toda uma carga da tradição erudita, e o Raul com o rock e da música popular? Não me conformava com o fato de que a cabeça dele era tão boa no território da palavra e tão simples no terreno musical. Eu queria que ele estudasse música para valer. Ainda bem que ele não ouviu o meu conselho. Ele não era um instrumentista, mas era um artista e um músico de muito bom gosto em quase tudo que fazia. Isso era o mais importante. Ninguém diz que Tom Jobim não era cantor. O que acha das novas tecnologias da comunicação do ponto de vista da música? O teclado eletrônico acabou com as orquestras, que eram celeiros para a formação de músicos. Eu não aceitei aquilo e de 1973 a 1979 fiquei sem trabalho e sem nenhuma luz no fim do túnel. Fui para os Estados Unidos e voltei com um diploma da Berkeley College, a melhor escola de jazz do mundo. Os professores eram vários músicos que tocaram com o Charles Parker e outros grandes músicos do jazz. Quando voltei, os alunos faziam fila para estudar comigo. Por que insiste em ensinar filosofia e questões existencialistas para os seus alunos de música? Porque abre atalhos para os alunos. Se ensinar só técnica não avança muito. Os jovens têm de sair da posição de descanso e conformismo. Procuro passar para eles a ideia de que eles sabem e podem mais do que imaginam. O Egberto Gismonti e o Dori Caymmi deram uma palestra na minha escola, chamada Bituca, em Barbacena, e eles disseram: o importante é fazer, deixa a qualidade para o público decidir. Coloco os alunos para compor, para deixar a mão boba experimentar os sons do instrumento. Errar é fundamental. É no erro que nós aprendemos mais. Como percebe a situação dos jovens em um mundo globalizado e bombardeado por informações de uma maneira avassaladora? Hoje, é muito difícil ser jovem porque existem infinitas possibilidades e, ao mesmo tempo, eles são reféns de dois ou três gêneros musicais. O bom gosto tem de ser levado até eles. As grandes fontes de nossa música são a africana, a indígena e a ibérica. A maioria não conhece as maravilhas que Ary Barroso e Noel Rosa fizeram no campo da harmonia. No máximo, vão até Caetano Veloso. Isso é uma tragédia. Como vê a axé music, o funk, a música sertaneja e a música eletrônica? Você já declarou que são expressões musicais mais de produtores do que de artistas. Por quê? As pessoas acreditam no que aparece na televisão. Alguns são autênticos, mas alguns são criados pelos produtores e não pelos artistas. O Djavan me mostrou canções belíssimas, mas que ele não vai gravar porque não corresponde à imagem dele. Então, as coisas ficam mais no campo da produção do que da criação. Cerca de 99% do que está nas ondas da telecomunicação e da indústria cultural se enquadra no que estou mencionando. E como mudar este cenário de homogeneização, massificação e manipulação cultural? Eu acho que a mudança tem de começar pelas escolas das cidades de médio porte. A Escola de Música de Montes Claros, por exemplo, tem 4 mil alunos. Nas cidades médias, é possível pressionar os políticos para que eles apoiem a cultura. Brasília é uma exceção, a Escola de Música estava ameaçada, mas o Carlos Galvão mostrou que a música cria emprego. É um argumento político e econômico. O senhor já afirmou que, atualmente, as pessoas mais pobres têm um gosto musical mais requintado e mais amplo do que as ricas. Por quê? Porque os pobres ainda não foram infectados pelo consumismo. Por não terem dinheiro, eles ficam fazendo música no quintal. São mais curiosos em conhecer outros gêneros musicais. Os ricos quando pensam em música contratam um professor que cobra 100 reais por hora.