Fernando Marques
Especial para o Correio
Se não há dúvida de que a face mais importante do múltiplo Machado de Assis é mesmo a do romancista maduro, por outro lado não se deve subestimar a sua produção noutras fases e gêneros. Atividades menos lembradas como a de crítico teatral, com a qual ele iniciou a trajetória, contam não só para a compreensão global da obra machadiana, mas também para o entendimento de aspectos relevantes da cultura no Brasil, dos quais o escritor foi testemunha assídua.
Escritos há 150 anos pelo jovem Machado de Assis, os artigos, as crônicas e as críticas de teatro reunidos em O espelho, livro organizado pelo pesquisador João Roberto Faria, exibem o rapaz de 20 anos de idade empenhado na modernização do palco brasileiro. O título reproduz o nome de um jornal de vida breve, que circulou no Rio de Janeiro de setembro de 1859 a janeiro de 1860 e que teve Machado entre os colaboradores. A primeira página do semanário O Espelho definia o tabloide como "revista de literatura, modas, indústria e artes".
A experiência durou apenas quatro meses, mas como diz o nome do jornal, pôde refletir aquele momento de mudanças, quando nova mentalidade chegava ao teatro, à imprensa e aos livros. O romantismo e seu repertório de dramas históricos e melodramas eram então substituídos, não sem polêmica, pelo realismo das comédias e dramas "de casaca". Estes se chamavam assim por buscar reproduzir os costumes da época (a casaca equivalia a terno e gravata).
As novas peças pretendiam ser verossímeis e corresponder à moralidade burguesa que se afirmava na França e, por cópia e empatia, no Brasil. Machado escreveu nas 19 edições do jornal; a partir do segundo número, assinou ali a "Revista de teatros", comentando os espetáculos encenados na capital do Império.
O volume divide-se em três seções. A primeira delas traz as crônicas intituladas genericamente "Aquarelas", além do artigo "A reforma pelo jornal". Nas "Aquarelas", Machado faz a sátira dos arrivistas literários, apelidados de %u201Cfanqueiros%u201D; dos parasitas que sugam o sangue alheio "na Igreja, na política e na diplomacia" ou, ainda, dos funcionários aposentados, "arqueólogos dos costumes" criticados por seu conservadorismo. São textos leves e superficiais, como se espera dos folhetins - gênero literário e jornalístico então em moda, no qual essas produções se inserem.
A segunda seção de O espelho, a mais extensa, envolve o artigo "Ideias sobre o teatro", útil para conhecermos o que Machado ambicionava para essa arte, e as 18 crônicas nas quais dá notícia do cotidiano de espetáculos e companhias. A terceira e última parte do livro divulga quatro crônicas que o organizador assinalou como "de autoria duvidosa", textos curtos que versam sobre assuntos tão diversos quanto os relatos lendários, o Mosteiro de S. Bento, edifício construído no século 16, e "as gralhas sociais", personagens nauseabundas de que o país não se desvencilhou até hoje, como demonstram os escândalos recentes.
O credo estético do jovem crítico ressalta nas crônicas da "Revista de teatros". A figura do encenador, conforme a entendemos hoje, estava longe de nascer; seu equivalente era o ensaiador, a quem se confiavam tarefas práticas. A atenção do comentarista incide, portanto, sobre o trabalho de autores e intérpretes, distribuídos pelas três companhias sediadas no Rio. Duas delas polarizavam atenções: a do romântico João Caetano, grande e veterano ator que, na ótica de Machado, não soube se renovar; e a do Ginásio Dramático, criada em 1855, grupo que trazia ao Brasil a novidade do realismo francês, em peças como A dama das camélias, de Dumas Filho.
Machado elogia ou censura os dramaturgos segundo o critério da verossimilhança: histórias e diálogos devem respeitar as expectativas de verdade, ou de reprodução da verdade, de seu público. As falhas lógicas no argumento ou no encadeamento das cenas e a linguagem excessivamente rebuscada, mais típica dos dramas românticos que das peças realistas, eram apontadas pelo crítico.
O jornalista dedicava bom espaço ao comentário do desempenho. Não se limitou a aplaudir e criticar, mas também aconselhava os atores, louvando os trabalhos que atendiam aos novos padrões de naturalidade cênica e rejeitando o que lembrasse romantismo, melodrama, dramalhão: voz tonitruante, olhares enfáticos, gestos excessivamente largos. Situados no polo oposto, ligados ao Ginásio, os atores Gabriela da Cunha e Furtado Coelho foram seus intérpretes prediletos. Furtado "não gritava em cena e evitava qualquer tipo de exagero", registra João Roberto Faria. Mais bossa nova que bolero.
São raros os autores que não pagam prenda à juventude extrema, e Machado não foge à regra. Seus primeiros textos (alguns ótimos) de quando em quando resvalam no que, há 150 anos, já deviam ser lugares-comuns, como ao falar em "páginas da arte" e coisas do gênero. O estilo hesita, embora anuncie, é claro, o grande prosador que ele se tornaria; a pontuação, acertadamente respeitada pelo organizador, é por vezes confusa.
Vamos descartar essas ressalvas para sublinhar o que importa: o modelo realista, surgido com o projeto teatral acalentado por José de Alencar, Quintino Bocaiúva e Machado de Assis nas décadas de 1850 e 1860, não durou para atender às melhores expectativas de seus mentores - mas preparou a terra para o romance perene das últimas décadas do século 19. Além de, na própria área do teatro, haver ajudado a formar escritores como Artur Azevedo.
Fernando Marques é jornalista e doutor em literatura brasileira pela UnB. Publicou Retratos de mulher (poesia), Zé e o livro-disco Últimos (peças teatrais) (www.fernandomarques.art.br)
Trechos de O espelho
Aquarelas - O parasita. 09-10-1859
O parasita ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da sociedade. Entra na Igreja, na política e na diplomacia; há laivos dele por toda a parte.
Na Igreja, sob o pretexto do dogma, estabelece a especulação contra a piedade dos incautos, e das turbas. Transforma o altar em balcão e a âmbula em balança. Regala-se à custa de crenças e superstições, de dogmas ou preconceitos, e lá vai passando uma vida de rosas.
A história é uma larga tela dessas torpezas cometidas à sombra do culto.
(...)Em política, galga, não sei como, as escadas do poder, tomando uma opinião ao grado das circunstâncias, deixando-a ao paladar das situações (...). Entra no parlamento com a fronte levantada, votado pela fraude, e escolhido pelo escândalo.
Exíguo de luz intelectual - toma lá o seu assento, e trata de palpar para apoiar as maiorias... Não pensa mal! quem a boa árvore se encosta...
Alguns sobem assim; e todos os povos têm sentido mais ou menos o peso do domínio desses boêmios de ontem.
Deixá-los subir às mesas do festim público. Mas tenham cuidado na solidez das cadeiras em que se sentarem.
O Sr. Furtado Coelho, [que interpretou] Paulo de Chennevi;res [em A honra de uma família], pintou o caráter de que estava encarregado com expressão e verdade. Teve cenas de verdadeira expansão, no segundo ato sobretudo. O que se nota neste artista, e mais que em qualquer outro é a naturalidade, o estudo mais completo da verdade artística. Ora, isto importa uma revolução; e eu estou sempre ao lado das reformas. Acabar de uma vez com essas modulações e posições estudadas que fazem do ator um manequim hirto e empenado é uma missão de verdadeiro sentimento da arte. A época é de reformas, e a arte caminha par a par com as sociedades.
Revista de teatros, 09-10-1859
Aprecio o Sr. João Caetano, conheço a sua posição brilhante na galeria dramática de nossa terra. Artista dotado de um raro talento[,] escreveu muitas das mais belas páginas da arte. Havia nele vigorosa iniciativa a esperar. Desejo, como desejam os que protestaram contra a velha religião da arte, que debaixo de sua mão poderosa a plateia de seu teatro se eduque e tome uma outra face, uma nova direção; ela se converteria decerto às suas ideias e não oscilaria entre as composições-múmias que desfilam simultâneas em procissão pelo seu tablado.
(...) As bênçãos da reforma lhe cobririam a cabeça; e as maldições dos fósseis, se os houvesse, não lhe fariam mal nenhum.
A leitora concorda decerto comigo; é a minha primeira vitória.
O espelho
Críticas teatrais, crônicas e artigos de Machado de Assis. Organização, introdução e notas de João Roberto Faria. Editora da Unicamp, 200 páginas. Preço: R$ 30.