O cabra pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) considerava que poesia era uma coisa romântica para gente meio afeminada. Mas tudo mudou ao entrar em contato com a poesia fragmentária, gaguejada e torta de Carlos Drummond de Andrade. Ler Drummond funcionou como uma revelação. João percebeu que poderia inventar uma poesia macha, tensa e tesa, com língua de faca, mandacaru e fuzil. Na busca obsessiva de fazer poesia com coisas, João criou poemas concretos, poemas-objetos, esculturas verbais cubo-futuristas: "O sol de Pernambuco é sol de dois canos/de tiro repetido./O primeiro dos dois, o fuzil de luz/revela real o real: tiro de inimigo".
Contudo, essa postura de negar a subjetividade alimentou o mito de que seria um poeta exclusivamente cerebral, um homem sem alma, que tinha como principal musa a razão, a cabeça de engenheiro. A própria obra de Cabral se encarrega de desmentir esse mito, pois a arquitetura rigorosa de sua poesia é sempre minada pela tensão do cabra pernambucano visceral: "E, por baixo, a realidade prima/Tão violenta, que ao tentar aprisioná-la/Toda imagem rebenta".
No livro Museu de tudo, publicado em 1975, coletânea de 84 poemas esparsos, escritos entre 1946 e 1974, relançado agora em edição ilustrada por imagens fotográficas (Ed. Alfaguara), João abre deliberadamente mão da arquitetura cerrada dos seus livros anteriores, como ele mesmo explica em um poema de abertura: "Este museu de tudo é museu/como qualquer outro reunido;/como museu, tanto pode ser/caixão de lixo ou arquivo./Assim, não chega ao vertebrado/que deve entranhar qualquer livro:/é depósito do que aí está,/se fez sem risca ou risco".
Como se vê, o próprio João colaborou, no poema citado, para desqualificar o livro na condição de obra menor. Mas, precisamente por "não chegar ao vertebrado", permitiu a João exercitar uma liberdade formal que não se encontra em seus livros de estrutura mais rigorosa, dando vazão à sua subjetividade. Essa liberdade fez muito bem ao João. Às vezes, a excessiva pretensão racional de rigor arquitetônico esvazia um pouco a surpresa e empobrece a sua poesia. Se a gente comparar, por exemplo, a poesia de João com a de Drummond, chegaremos facilmente à conclusão de que Cabral pode ser mais rigoroso, mas a obra do mineiro é mais rica em variações.
Liberdade
Por todas essas razões, é muito bom ver João flanar livremente em poemas de circunstância sobre viagens, lugares, paisagens, amigos, poetas, jogadores de futebol. Em todos os temas, Cabral revela, enfatiza ou extrai o seco, árido, áspero e contundente de sua antilira. É impressionante como ele estabelece conexões reveladoras sobre o caráter do recifense ao se dirigir ao craque de futebol Ademir Menezes em um belo poema. O jogador teria a habilidade de surpreender pelo fato de ter crescido entre dois "ambientes ambíguos", o mangue e o frevo: "Você, como todos recifenses/ nascidos onde mangues e o frevo/soube mais que nenhum passar/de um para o outro, sem tropeço./Recifense e, dividido/entre dois climas diferentes,/ambidestro do seco e do úmido/como em geral os recifenses,/como você, ninguém passou/do dentro de um para o outro ritmo,/nem soube emergir, punhal, do lento:/secar-se dele, vivo, arisco".
Em Museu de tudo, Cabral se permite a leveza, a despretensão e a espontaneidade da crônica. É como se João escrevesse incorporado por Carlos Drummond de Andrade. Transita entre impressões de viagens ("Impressões da Mauritânia"), perfis ("W. H. Auden", "O pernambucano Manuel Bandeira"), experiências de leitura, evocações ("Retrato de Andaluza"), devaneios ("O torcedor do América F.C.") e implicâncias ("Anti-Char"). Depois de 35 anos da sua primeira edição, é possível perceber que Museu de tudo não é "caixão de lixo ou arquivo" como sugeriu o poeta. É a falsa poesia menor.
Esse tom menos pretensioso enriquece de matizes a sua obra, insinuando uma nova maneira de olhar, uma dicção mais livre e mais leve. E nem por isso deixam de repontar belos poemas ou versos ("O mar e os rios do Recife/são touros de índole distinta:/o mar estoura no arrecife,/o rio é um touro que rumina") com os grandes temas de Cabral: a aridez, a crueza, a obsessão pela materialidade, a dimensão animal da vida, o fio afiado da linguagem, a busca de uma antipoesia.
Isso fica evidente mesmo em uma despretensiosa resposta de Cabral a uma poema de Vinicius de Moraes, em certo sentido o seu antipoda romântico, que o chamou de "camarada diamante". A réplica de Cabral constitui, na verdade, quase que uma poética: "Não sou um diamante raro/nem consegui cristalizá-lo/se ele se surge no que faço,/será um diamante opaco,/de quem por incapaz do vago/quer de toda a forma evitá-lo,/senão com o melhor, o claro,/do diamante, com o impacto;/com a pedra, a aresta, com o aço/do diamante industrial, barato,/que incapaz de ser cristal raro/vale pelo que tem de cacto".
Poemas
Pernambuco em mapa
Só vai na horizontal
nos mapas em que o mutilaram;
em tudo é vertical:
dos sobrados e bueiros da Mata
até o mandacaru,
que dá a vitalícia banana
a todos que do Sul
olham-no do alto da mandância.
Aquela horizontal
é enganosa, está só nos mapas:
não diz de sua história
é muito menos de sua casta.
Casa-grande & senzala, Quarenta anos
Ninguém escreveu em português
no brasileiro de sua língua:
esse à-vontade que é o da rede,
dos alpendres, da alma mestiça,
medindo sua prosa de sesta,
ou prosa de quem se espreguiça.
O sol no Senegal
Para quem no Recife
Se fez à beira-mar,
O mar é aquilo de onde
Se vê o sol saltar.
Daqui, se vê o sol
Não nascer, se enterrar:
Sem molas, alegria,
Quase murcho, sol lunar;
Um sol nonagenário
No fim da circular,
Abúlico, incapaz
De um limpo suicidar.
Aqui, deixa-se manso,
corroer, naufragar;
não salta como nasce;
se desmancha no mar.
MUSEU DE TUDO
De João Cabral de Melo Neto. Editora Alfaguara, 168 páginas. Preço: R$ 35,90