"Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso." Otto tirou desse início de A metamorfose, a mais famosa novela de Franz Kafka (1883-1924), o título de seu quarto disco de estúdio, lançado em setembro nos Estados Unidos e agora no Brasil. Cobaia de si mesmo, o músico pernambucano - que havia seis anos não gravava um CD de inéditas - tomou Kafka como referência para falar das dores do mundo e de seu inferno particular. Em vez de ficar inerte no quarto escuro, transformado em barata, feito o personagem, ele gritou, esperneou. E fez um álbum ótimo, vigoroso, para que quem ouvisse se sentisse vivo também.
Produzido por Otto e Pupillo de forma independente, Certa manhã acordei de sonhos intranquilos traz 10 faixas - oito novas e duas regravações. As inéditas foram compostas ao longo dos últimos seis anos (especialmente entre 2006 e 2007), período de crise que inclui o rompimento com a gravadora Trama, o fim do casamento com a atriz Alessandra Negrini e, no mês passado, a morte da mãe. "Há sempre um lado que pesa/ e outro lado que flutua", canta na primeira música, Crua. "Nasceram flores num canto de um quarto escuro/ Mas eu te juro/ São flores de um longo inverno", diz na quinta, Seis minutos. "No canto dos olhos eu sei/ que a viagem é longa/ A voz vai e vem/ Você tá aí? Você tá aí? Ei, você está aí?", pergunta o amigo (e convidado) Lirinha, parceiro em Meu mundo dança.
Vocalista do Cordel do Fogo Encantado, Lirinha é um dos cantores que entram nos créditos das participações especiais, ao lado da paulistana Céu (que divide O leite com Otto) e da mexicana Julieta Venegas (presente em duas faixas, Saudade e Lágrimas negras). "Julieta é extraordinária cantora. A amiga Céu, a mesma coisa de bom. Lirinha, um dos maiores poetas desta geração. Frutos do respeito e do talento. Tenho sorte. Muita sorte", comenta Otto, que também elogia o "português arrastado" de Julieta na versão de Lágrimas negras, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, incluída na trilha do filme mexicano Sólo Dios, dirigido por Carlos Bolado. "Esta música é uma obra de arte, os versos são lindos."
A outra releitura do disco é Naquela mesa, de Sérgio Bittencourt, famosa na voz de Nelson Gonçalves. A gravação foi feita para Árido movie, longa-metragem do também pernambucano Lírio Ferreira. "Cantei inspirado e tentando chegar perto da interpretação de Nelson. Lógico que estou ainda longe. Mas, só em querer, já faz diferença", diz Otto. Detalhe: quem toca órgão na faixa é Lafayette, o grande tecladista da Jovem Guarda. "Hoje mesmo falei com ele, não nos falávamos desde o dia da gravação", conta. "E ele falava da modernidade que eu dei à música. Mas foi ele, e não eu, quem deu modernidade a ela. Sem sombra de dúvida, uma das coisas mais marcantes do álbum. Um luxo pra poucos."
Também marcantes são as guitarras setentistas/psicodélicas de Fernando Catatau (Cidadão Instigado), o peso e a mão certeira de Pupillo, baterista e percussionista da Nação Zumbi. Catatau - cearense de 38 anos que produziu Iê, iê, iê, de Arnaldo Antunes, outro disco ótimo lançado em 2009 - faz parte da banda de Otto há nove anos. "É um cara fora de série", elogia Otto. "E Pupillo é o meu maior parceiro e amigo, o maior baterista do mundo. É um dos maiores produtores desta nova geração. Fico curtindo o talento e a capacidade genial dos dois." Bem cercado (inclusive pelo baixista Dengue), Otto acorda e segue em frente com o barco, vislumbrando manhãs de sol.
Cinco perguntas - Otto
Certa manhã... é o primeiro CD de inéditas depois de seis anos. Por que tanto tempo? O desacerto com a Trama começou quando?
Esse tempo revela o tempo de uma independência. Revela a impermeabilidade do carisma na construção de um artista contemporâneo. Sou a imagem do abismo e do se jogar na criação. Tenho certamente um público que me aguarda, que espera e não se desaponta, que celebra nos shows... Nunca estarei só. Música é visceral, contundente, popular, fruto da troca, da exposição, salva vidas, muda pensamentos. Nunca briguei com a Trama. Simplesmente nos descartamos.
O título é referência ao livro A metamorfose, de Kafka... Assim como o personagem, teve a sensação de que as pessoas se viraram contra você?
Meu público nunca se virou. O mercado, sim, capotou, a mídia estava no mesmo bonde. Eu saltei e ainda socorri com arte, com o livre arbítrio. Quem quis ignorar perdeu de vista o tempo. Kafka explica a dor e escolhe as razões. E eu escolho meu caminho, toco o barco. Vislumbro uma manhã feliz.
É um disco que fala de dor, e é bastante vigoroso. Ele o fez/faz sentir (mais) vivo?
Quando compus o disco, meu maior desejo era de que quem o escutasse se sentisse vivo. Tento reinventar a mim e ao mundo. Utopia ou não. Continuo acreditando em arte, como forma de superação. No geral, amo quebrar a cabeça e descobrir outros estados pra viver neste caos... mudar o foco. A vida está mudada, isso é fato.
Certa manhã... abre uma trilogia? Você já anunciou para 2011 o próximo disco, The moon 1111... E o terceiro, já teria um título também?
É o começo de uma trilogia. Gosto de pontuar desta forma. The moon 1111 virá com Naná Vasconcelos e Pupillo na produção. Mas o final só depois do segundo. Mas virá forte... com o tempo e o espaço.
Você tem muitas composições guardadas? Um baú, digamos, com canções ou esboços que retoma quando vai gravar um disco?
Tenho uma fonte que não seca. A cada minuto surge um tema, um novo pensamento. Tenho um espírito inquieto. Meu caos abrange também a criação. Meu suingue assina embaixo. Não sou músico. Sou a música.
CERTA MANHÃ ACORDEI DE SONHOS INTRANQUILOS
Quarto disco de estúdio de Otto, produzido por ele e Pupillo. Lançamento Arterial Music/ Rob Digital, 10 faixas. Preço médio: R$ 26.