Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Perdão, mister Fiel provoca forte impacto na plateia do Festival de Brasília

Ricardo daehn

Tiago Faria

Yale Gontijo

Desde a solenidade de abertura, um tema incômodo não abandona a programação do 42; Festival de Brasília. Todos os longas-metragens exibidos até a noite de quinta-feira trataram ; direta ou indiretamente ; da resistência à ditadura militar. Em Lula, o filho do Brasil, a repressão oficial foi encenada com o tom brando de um folhetim. Já em Filhos de João, admirável mundo novo baiano, as memórias dos anos de chumbo serviram de contraponto para a experiência libertária dos Novos Baianos. Mas nada se compara à forma incisiva como o documentário brasiliense Perdão, mister Fiel encarou o trauma político. A investigação jornalística, com depoimentos de impacto, provocou aplausos demorados e comoção no Cine Brasília. Dirigido pelo alagoano Jorge Oliveira, de longa experiência no jornalismo, o projeto revira os horrores do governo militar a partir da morte sob tortura do operário Manoel Fiel Filho, em 1976. A morte do militante, que tirou literalmente o sono do presidente Ernesto Geisel, é lembrada hoje como o episódio trágico que iniciou a abertura política do país. Na plateia, a viúva de Manoel, Thereza de Lourdes Fiel, assistiu à homenagem pela primeira vez. ;O filme mexeu comigo. Acho importante que as pessoas conheçam essa história. Fiquei triste mas, ao mesmo tempo, contente por ter sido um filme tão bem feito;, comentou. Aula de história Com o didatismo de uma aula de história, o cineasta narra o caso alternando uma modesta dramatização dos fatos (em preto-e-branco, com detalhes coloridos) com as impressões de um elenco de entrevistados que agrega quatro presidentes ; Ernesto Geisel, José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula ; e um ex-agente do DOI-Codi Marival Chaves, que chocou o público pela lucidez como descreve a brutalidade de prisões ;mais ou menos legais; e aponta nomes de militares que atuaram em torturas. ;É gratificante levar tudo isso para a tela. Vi que algumas pessoas aplaudiram o filme de pé. Estou emocionado;, afirmou o diretor, logo depois dos aplausos. Durante a sessão, os espectadores reagiram com vaias à aparição de José Sarney na tela, e voltou a demonstrar insatisfação (só que menos barulhenta) durante as participações de FHC e Jarbas Passarinho. Antes da projeção, Jorge Oliveira pediu que o público aplaudisse respeitosamente o presidente do PPS, Roberto Freire, que estava na sala. ;O filme é sobre o Fiel, mas poderia ser resumido como um filme sobre o povo brasileiro. Ele fala de democracia e pode ser uma arma poderosa para solucionar as denúncias que foram apresentadas;, definiu o político.

Veja entrevista com os diretores do filme

CRÍTICA Mais jornalismo do que cinema Lúcio Flávio
Ainda com a identidade ferida, resquícios de problemáticas edições passadas, sem direção para apontar um caminho entre o conteúdo e a forma, a mostra competitiva brasiliense dá claro sinais de estagnação em seu formato, perdida entre a realidade e a ficção, entre o verdadeiro e o falso. Depois de três dias de festival, o público de um dos mais importantes eventos cinematográficos do país não viu explodir na tela do Cine Brasília uma produção genuinamente voltada ao fazer do cinema. Norteado por tema dos mais sérios, Perdão, mister Fiel é um contundente registro jornalístico sobre triste passagem da história do país, tendo como personagem central o operário Manuel Fiel Filho, assassinado nas dependências do DOI-Codi paulista, em 1976. E, só por este último detalhe, não deixou se banalizar pela saturação do assunto ; os meandros da ditadura militar em voga no cinema nacional. Em nenhum momento Perdão, mister Fiel funciona como filme. Nem mesmo quando o diretor Jorge Oliveira recorre a tosca e desnecessária dramatização dos acontecimentos narrados. Recurso ainda mais empobrecido pela enfática trilha sonora do maestro Jorge Antunes. Tais elementos negativos não comprometem, contudo, a importância do projeto como trabalho de reportagem. Daí a importância de depoimentos de personalidades políticas que vivenciaram esse período, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o senador José Sarney, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas sobretudo do agente do DOI-Codi Marival Chaves, que silenciou o Cine Brasília com suas declarações polêmicas e denúncias bombásticas. Curtas O título dúbio que convida inconscientemente o espectador a uma realidade diferente da apresentada nas telas denota a maturidade do diretor Marcelo Caetano, do curta paulista Bailão (HHH), ao conduzir temática obscura: o submundo gay entre as pessoas com uma faixa-etária mais avançada. O projeto transpira sinceridade, de longe o melhor filme do festival até aqui. O mesmo não cabe ao pretensioso curta carioca Água viva (H), de Raul Maciel. Ao tentar agregar conceitos abstratos sobre a relação do corpo feminino com a natureza, dentro de narrativa poética, dá vazão a um trabalho hermético, que não dialoga em nenhum momento com o público.
A voz da repressão Edson Luiz
Marival Chaves, um dos personagens principais do documentário Perdão, mister Fiel, não é uma figura desconhecida da mídia brasileira. Por várias vezes, deu pistas sobre como o regime militar atuava. Mas, nos últimos dias, preferiu ficar calado antes do lançamento da obra de Jorge Oliveira, no Festival de Brasília. As notícias publicadas antes da estreia do filme fizeram com que ele se retraísse. Porém, não nega nenhuma das declarações feitas no documentário. ;O filme é fiel. Ele retrata bem o que eu falei;, afirmou Marival ao Correio. O ex-integrante das forças de repressão da ditadura não viu a obra finalizada, mas espera receber uma cópia de Jorge Oliveira, tão logo acabe a competição. Seu depoimento, segundo Marival, é uma forma de colaborar com o futuro. ;Meu compromisso, agora, é com o resgate da história;, afirma o ex-agente do DOI-Codi. No filme, ele fala sobre esquartejamento de pessoas, como sugere, inclusive, o do ex-deputado Rubens Paiva, morto durante o regime militar. Marival afirma que não tem nenhum documento sobre o período em que atuou na repressão aos chamados inimigos do regime, no final da década de 1970, mas lembra que muitos militares ainda possuem papéis que podem esclarecer melhor a história do país. ;Acho ótima a ideia de procurar por documentos, mas isso será prejudicado pelo fato de muitos deles terem sido manipulados pelos oficiais;, observa.