O público que acompanhar a projeção de hoje da mostra competitiva do 42; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, no Cine Brasília, deve ser avisado sobre o "funeral artístico" que será realizado na ocasião. "Um amigo, Carlos Alberto Mattos, disse que eu era um documentarista com estilo. Mas, agora sou um documentarista em busca de estilo. Quebradeiras é uma ruptura brutal na minha carreira", destaca o cineasta e jornalista Evaldo Mocarzel, 49 anos.
O diretor carioca finca o marco da mudança numa latitude remota do Brasil onde os estados do Maranhão, do Tocantins e do Pará se encontram. A região é conhecida como Bico do Papagaio e as protagonistas são habitantes locais, mulheres quebradeiras de coco de babaçu. "Eu sou homem, estou entrando num universo feminino e achei que o caminho poético era mais acertado sob o ponto de vista documental. É um documentário etnográfico por excelência, mas não queria que fosse objetivamente masculino", descreve.
A promessa de revolver estruturas em voga nos documentários contemporâneos brasileiros (aqueles apelidados de "cinema conversa" pela crítica) e no próprio estilo de Mocarzel permeia todo o discurso do realizador de representações calcadas na entrevista, como em À margem do concreto (2005), À margem da imagem (2001) e À margem do lixo (2008). "Me considero um dramaturgo em processo e o teatro é o tempo do ator e da palavra. A palavra sempre me fascinou. Mas, usei e abusei da palavra nos filmes anteriores. Neste (o 10; da carreira) só vai existir a palavra cantada, extraída das manifestações musicais das mulheres, o lindô, a mangaba, o reisado e a ladainha", explica o documentarista renovado.
Mais dogmas formais serão derrubados nestes hectares cinematográficos. "Não existe um só plano em movimento. Todos são fixos, com arquitetura de quadro muito trabalhada onde as quebradeiras encenavam mesmo", explica o documentarista sobre o conceito inspirado nos experimentos de Robert Flaherty nos primórdios do documentário.
[SAIBAMAIS]A trilha sonora original composta por Thiago Cury e Marcus Siqueira trabalha com a reverberação da marimba para criar ambiente sonoro panteísta e é o último dos novos preceitos seguidos pelo cineasta. "Fui buscar inspiração para este documentário no experimentalismo dos mineiros Cao Guimarães, Pablo Lobato, Lucas Bambozzi, Helvécio Marins e Marília Rocha. De alguma maneira, eu sublimei uma santa inveja dessas atmosferas que eles fazem. Acho bacana assumir isso publicamente", diz.
A experiência deve exigir paciência dos espectadores. "No palco, gostaria de pedir para o público desligar celulares e qualquer outro equipamento eletrônico e entrar nessa viagem sensorial, de dilatação do tempo, de uma cronologia que não é retilínea e acelerada como a da cidade", convida o diretor.
Curtas
No Festival de Brasília de 2005, o burburinho criado em torno do documentário em 35mm Rap, o canto da Ceilândia tinha um quê de surpresa mais pela origem do filme realizado pela nascente CeiCine do que pela qualidade da produção. O diretor Adirley Queiroz, àquela época estreante, terá na sessão de hoje à noite, uma espécie de prova de fogo com a exibição da primeira ficção totalmente realizada pela produtora ceilandense.
Dias de greve narra a história de um grupo de serralheiros, funcionários de uma oficina de fundo de quintal que se rebelam contra o patrão e organizam uma greve inócua para os horizontes de qualquer cidade. Adaptação do conto Os mudos, de Albert Camus, publicado em O exílio e o reino, o curta era chamado de Nós vivendo na fase de produção.
Talvez o título abandonado resumisse melhor a ideia da ficção sobre homens que redescobrem a cidade onde moram. "Eles passaram 10 anos trabalhando de segunda a sábado e não repararam na Ceilândia moderna do metrô que corta o campinho de futebol, da verticalização, da especulação imobiliária, do carnaval de grandes proporções que chegou à cidade", comenta Queiroz. "Nós decidimos encarar sozinhos essa produção sem chamar ninguém de fora, com exceção de alguns técnicos como o diretor de fotografia (André Carvalheira) e de som (Chico Craesmeyer), porque esse ainda é um campo que não dominamos. A gente não fazia ideia de como seria isso, foi um aprendizado para todo mundo", constata o diretor sobre a produção de orçamento considerado bom para curtas-metragens, cerca de R$ 114 mil.
Religiosidade
À hora do Angelus, marcada religiosamente às 18h, rádios de todo o mundo transmitem a composição Ave Maria, do compositor austríaco Franz Schubert. O imenso campanário global serve para lembrar católicos sobre a anunciação do anjo Gabriel a Virgem Maria diariamente. A hora, também conhecida como a das Ave Marias, inspirou o cineasta pernambucano Camilo Cavalcanti a investigar questões de religiosidade brasileira numa série de documentários em curta-metragem.
O segundo da trilogia chamado Ave, Maria ou a mãe dos sertanejos finca pé no sertão central pernambucano, na cidade de Serrita, onde a rádio local também respeita a hora do Angelus. Porém com toques sertanejos da sanfona de Luiz Gonzaga. Quinze moradores da cidade participaram de oficina audiovisual e trabalharam em conjunto com a equipe do cineasta durante todas as fases da produção do documentário experimental durante o período de dois meses. "Evitamos o olhar do estrangeiro. Esse tempo de produção propiciou um olhar verdadeiro, honesto, de dentro para fora do sertão. É um filme extremamente simples que fala daquele lugar de costumes antigos, arcaicos em meio à globalização que o mundo está passando", explicou Cavalcanti.
42; FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO
Mostra Competitiva 35mm, Sexta, às 20h30 e 23h30, no Cine Brasília. Exibição dos curtas-metragens Dias de greve, de Adirley Queirós, e Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante e do longa metragem Quebradeiras, de Evaldo Mocarzel. Filmes não recomendados para menores de 16 anos.