"Medalha no seu peito/e no meu o coração", já escreveu o poeta carioca Armando Freitas Filho, desconfiado das homenagens oficiais. Ele ganhou três prêmios Jabuti e, agora, perto de completar 70 anos, parece viver um momento de consagração definitiva como um dos grandes poetas brasileiros vivos. E da maneira menos oficial possível. Recebeu carta elogiosa do crítico Antonio Candido e tornou-se personagem dos documentários de dois de seus leitores apaixonados: um de João Moreira Salles e outro de Walter Carvalho. Armando é o nosso correspondente de guerra no Rio de Janeiro, mas já pensou em morar em Brasília, depois de ler uma famosa crônica de Clarice Lispector. Nesta entrevista, ele fala sobre memória, Carlos Drummond, João Cabral, poesia, prazer e morte.
Qual é o olhar de um poeta carioca diante das formas simétricas de Brasília? Você é daqueles que procura o mar quando sai do Rio?
Ah, sim. Tenho um poema sobre Brasília que já que saiu no Correio pouco depois da fundação da nova capital. Estava atento às cidades satélites. Já pensei utopicamente em morar em Brasília. Teria uma paz que não tenho aqui. Como não morador, a minha sensação brasílica foi guiada pela mão dessa deusa Clarice Lispector. Quando li a crônica dela sobre Brasília, fiquei comovido. Começa com a magnífica frase: "Brasília é construída na linha do horizonte".
Por que, em Lar, seu último livro, você diz que não tem nada com o "menino antigo", de Carlos Drummond de Andrade?
Os livros de memória de Drummond foram colocados sob um título único de Boitempo, e Menino antigo é um deles. É uma memória muito mais construída. É como se Carlos Drummond se autoprojetasse em slides, ou seja, ele está de fora. Eu não, escrevo misturado, estou dentro da própria foto que tiro. É sempre tremida, torta, fora de foco. A máquina está na minha mão.
Você homenageia, assopra, mas morde Bandeira, João Cabral e Drummond. Afinal, decida: eles são seus amigos ou inimigos?
(Risos). Eles são amigos antes de tudo como nunca tive. Ao mesmo tempo que são amigos, são três esplendores, se você ficar sem implicar um pouco com eles, eles tomam conta, lhe paralisam, medusam. Você fica paralisado diante da luz do sol. Mesmo sabendo que nunca vai chegar àquele brilho, tem de lutar para brilhar igual e não ser ofuscado. Acrescentar uma outra lâmpada, se não solar, ao menos de uma cor diferente.
Como foi o seu encontro com Manuel Bandeira?
O meu primeiro livro se chama Palavras. Eu tinha 22 anos, era tímido e fui com meu pai à casa dele. Papai era uma homem da faixa etária do Bandeira e, na verdade, o Bandeira conversou muito com ele. Eu fiquei por ali sentado. Mas quando tratou do meu livro ele se dirigiu a mim e disse: "O seu livro é interessantíssimo". Guardei para sempre esse superlativo. Disse também: "Eu já estou muito velho para apreciar isso devidamente. Para conseguir um parecer mais amplo, você deve procurar pessoas da sua idade. Vão te dar o empurrão. Vou lhe dar dois nomes: Ferreira Gullar e um José Guilherme Merquior". Bandeira estava certíssimo. Procurei o Zé Guilherme, que era mais moço do que eu, tinha 20 anos. Zé Guilherme era um moço furão. Logo, pegou o telefone e ligou para o Fernando Sabino: "Tenho um poeta aqui muito bom e está precisando fazer o livro". O Fernando Sabino respondeu: "Tenho uma sobra de papel, pode vir aqui e pegar tudo". Peguei lá um papel ótimo e o livro saiu em 1963 em edição particular.
Estamos na passagem dos 10 anos da morte de João Cabral. Mas ele continua vivo como poeta?
Recentemente, um repórter me perguntou quem eram os maiores poetas vivos do Brasil e eu respondi: Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira. Muitos anos depois de mortos, eles continuam vivíssimos. Você interage com eles o tempo todo. É algo que te dá uma responsabilidade muito grande. Afie bem a pena senão fará papel feio. Qualquer poeta de minha geração seria menor se não tivesse a obra do João. A sua poesia é uma overdose que revigora, lhe faz ficar mais forte para a sua missão de escritor e de homem.
E o Drummond, qual o lugar dele?
Entrei de braços dados com o Hélio Pelegrino no enterro do Carlos Drummond de Andrade. Um jovem repórter perguntou a mim e ao Hélio o que achávamos daquilo: coincidentemente, as duas frases foram parar no vestibular daquele ano. A fala do Hélio foi a seguinte: "Eu não me entenderia como ser humano sem a obra dele". O grande escritor não forma só o outro escritor, forma o outro ser humano. E eu disse que Carlos Drummond é maior do que o Brasil.
O que você quer dizer com isso?
Eu quero dizer que se o Brasil quiser chegar a um estado igual precisará ter a grandeza moral, de especulação sobre os seus fundamentos, como Carlos fez. Você já imaginou a Inglaterra sem Shakespeare? Seria uma coisa menor. Quem escreve daquele jeito forma o ser humano, a condição da pátria. Para alcançar este esplendor precisa ter o que a obra tem. Não é que o Brasil fez Carlos Drummod; é Drummond quem faz o Brasil. Ele funda o ser, o modo que o ser interage com a emoção, o amor e a morte. É difícil superar Drummond e Machado de Assis.
Você acha que encontrou uma voz dentro da poesia brasileira, que tem todos esses gigantes?
Eu acho que sim. A minha pretensão sempre foi obter um lugar em minha geração. Este gol eu fiz. Sou uma voz entre outras vozes. Primeiro você tem que existir no seu próprio quintal e sua própria época. Não sou maior, melhor do que ninguém, mas tenho uma voz pessoal, irredutível. Agora, se vai perdurar eu não sei. Sou moderadamente esperançoso. Mas a verdade é que sou cético, tenho uma traça roendo por dentro.
A traça é um inseto machadiano...
Sinto que é algo machadiano e kafkiano. No conto A metamorfose o Kafka não nomeia o inseto no qual se transforma, mas sempre penso que posso acordar como uma traça.
Mas a poesia não te salvou, não te fundou?
Ela me fundou, mas ela me afunda também. Não posso dizer que ela me salvou. É por causa do ceticismo. Ao contrário: me jogou para o meio da vida, para eu reconhecer que a vida passa. A nossa história não tem um final feliz nunca. Não acaba bem. Claro, é sempre uma história que acaba em morte. Tenho a consciência muita viva que escrevo com a morte. A morte é o outro autor. Escrevo segurando a mão dela. A gente fica pedindo: "não me agarre". A gente sabe que nesta queda de braço quem ganha é ela.
O Guimarães Rosa tem uma concepção mística, ele acha que estamos de passagem pela terra para aprender...
É uma sabedoria, mas eu não ainda não tenho. Vou morrer, mas deixo claro: sob protesto.
Você gosta de viver? O que gosta de fazer no Rio?
Adoro viver, caminho todos os dias à beira-mar. Gosto de encontrar os amigos, conversar, namorar, ter filhos. De repente, esses prazeres se acabam. Quero fazer greve em relação à morte.
O que é a beleza para você?
Para mim, o repertório da beleza não existe claramente. Se existe uma beleza, é a que foi tirada a forceps, a ferros. Sou uma pessoa dramática, na poesia e na vida pessoal.
De certa forma, isso não combina com a imagem do carioca como um boa vida?
É, dizem que o carioca tem espírito frajola. Sou carioca da gema, gosto de praia, mulher e futebol, mas sou o anti-Zé Carioca. A minha roupa é pesada, o meu sapato é de amarrar.
Como é viver em uma cidade sitiada como é o Rio de Janeiro?
No meu livro Raro mar há um poema chamado Revólver, em que digo: "Cada dia é uma bala de roleta russa". Me sinto acuado, em guerra, no front. No Rio, não há casa, refúgio seguro, há front. A melhor casa é a trincheira. No poema eu escrevo: "Cada câmara pode ser vazia ou ocupada./O dia para na cara da paisagem. /Em um segundo, dispara". O Rio tem uma beleza atroz. Linda e ao mesmo tempo feroz. Ela se metamorfoseia. Você pode passear no Leme e morrer no pôr de sol mais lindo do mundo. A bala perdida é a materialização do acaso, meu velho. É uma questão política. O Rio retrata o Brasil: um país rico como o nosso não poderia ter tanta gente miserável. A miséria é uma obra sinistra das elites brasileiras.
Quantas palavras têm sua vida?
Cabe em uma mensagem de twitter e é capaz de sobrar espaço para mais coisas. E, para dizer como Proust, talvez a palavra que caiba é fim. Proust escreveu fim no livro Em busca do tempo perdido. Drummond escreveu em um pedaço de papel, depois da morte de sua filha Julieta: "Hoje morreu a pessoa que mais amei na vida. Fim".
O tempo morde, deixa marcas. Qual é a que mais dói?
É a marca da velhice. É quando o espelho fica cruel, intransigente. Nada pior do que ter em casa um espelho intransigente. Todos os espelhos ficam assim. Não é à toa que Drummond disse: "Acordo, faço a minha barba amarga".
Há lirismo nos sinais de trânsito, no cotidiano, diante da novela?
Nos sinais de trânsito que frequento, não. Tenho um poema que fala dos meninos jogando bolinhas nos semáforos. Digo que são malabaristas do mal-estar. Não há lirismo nenhum, o sinal vermelho é de sangue coagulado. Quanto às novelas, destesto, nunca vi nenhuma. Acho falso este mundo esmaltado da Globo. Não há drama naquilo, é uma beleza grotesca. Não como neste prato.
Poetas cometem pequenos suicídios diários, tais como fumar, beber, esquecer de dormir... Você comete algum?
Não bebo, mas o suicídio é saber que este dia pode ser o último. Não é preciso bebida, droga ou qualquer coisa.
Que conselhos daria para os poetas que estão começando?
Começarem mesmo, acreditarem. Terem paixão e paciência, fazerem uma trança com estas duas sensações.
O crítico literário Antonio Candido lhe escreveu uma carta dizendo que de sua poesia germinam muitos significados. Como você comentaria esta declaração?
Antonio Candido não é só um crítico, é o criador do olhar mais inteligente que se pode ter em uma obra de arte. Quando diz isso, ele me conforta muito e me confirma. Fico muito contente porque confirma o meu anseio, sem eu falar nada. É como ganhar o melhor doce do mundo, um doce dos deuses.
Você acredita no Brasil, apesar de todos os problemas sociais?
Acredito firmemente no Brasil. E não tenho remédio se não esse. Porque é um país que tem Carlos Drummond, João Cabral e Antonio Candido. Quando Drummond escreve, quando Antônio Cândido fala, eu acredito que o Brasil existe.
SINAL VERMELHO
Furo o sinal vermelho
que não me estanca
sangrando a seta do lado esquerdo
me enfio por agulhas, gargalos,
gargantas, o mar está à margem
tem pressa, mas não sai do lugar
engarrafado, e ainda que felino
enferruja em frente à praia
enquanto rodo o Rio todo e tomo
sucessivos ônibus, táxis, metrô e
cada dia é irreparável
o corpo não tem férias
vai no arrastão, com a roupa da hora
sempre ao alcance de balas além
(trecho)
ADEUS
Pancada de chuva
No peito do verão
Que continua batendo.
(...)
O dia decide palmas,
braçadas no mar
ou de flores fortes.
O dia
ultra-rosas urgentes
em choque/
Que chegam a tempo de
morrer/com toda a cor
antes da noite.