Ainda hoje quem entrar no sertão nordestino há de ouvir delírios muitos sobre o cangaço e seu rei, Virgolino (sim, com o, como na certidão de nascimento) Ferreira, o Lampião. Uma meiota de cachaça na mesa, tendo um preá por petisco e meia hora de conversa com o povo são o bastante para o tema brotar. Diz-se por lá que o episódio de Angicos é uma invenção. Que o cabra escapou do cerco e viveu tranquilo com sua Maria Bonita até morrer de velhice no interior de Minas Gerais, em meados dos anos 1980. Ou que a morte abraçou-lhe pelo veneno de um coiteiro, não pelas balas da polícia, incapaz que era de afrontar o capitão.
Mais de 70 anos depois do fim do cangaço, pois, o mito está vivíssimo na cultura nordestina, sobretudo do sertão. Até então onipresente na tradição oral da poesia popular, agora ele transcende à erudita por obra do professor, poeta e ensaísta pernambucano Carlos Newton Júnior. Ele reuniu na antologia O Cangaço na poesia brasileira (Editora Escrituras, 254 páginas) o que de melhor foi escrito a respeito pelos poetas brasileiros - 35 deles, dos quais apenas quatro não são nordestinos.
O livro oferece uma visão ampla do cangaço. João Cabral de Melo Neto, filho de família abastada, dona de engenho, aparece com dois poemas. Em Por que prenderam o Cabeleira ele aponta o erro tático daquele que é considerado como o primeiro cangaceiro da história - Zé Gomes, bandoleiro apelidado de Cabeleira -, em tentar fugir da polícia no canavial do Engenho Novo, vizinho às terras da família Cabral. "Quis descer pelos canaviais/onde um fantasma é incapaz/onde a rasa planta de cana/nem pode esconder um capanga". No outro, ele lembra de uma visita de Antônio Silvino em pessoa ao Engenho do Poço, onde morava.
Há, entre os cientistas sociais, intenso debate acerca da gênese dos guerreiros sertanejos. Uma das teses mais aceitas é a exposta pelo padre e historiador Frederico Bezerra Maciel, na extensa obra Lampião, seu tempo e seu reinado. Segundo diz, o cangaço agregou homens e mulheres sedentos de vingança, basicamente em conflitos por terra, num tempo em que o Estado não havia chegado ainda ao sertão.
"Carne e osso"
Também os poetas eruditos se ocuparam do tema, como bem mostra a antologia. "O homem da minha terra tem um deus de carne e osso", anuncia Ascenso Ferreira, no poema Minha Terra. Depois arremata: "Os guerreiros da minha terra já nascem feitos/Não aprenderam esgrima nem tiveram instrução.../Brigar é seu destino: - Cabeleira! - Conselheiro! - Tempestade! - Lampião".
Naquele que é chamado pelo organizador do mais belo poema já feito sobre cangaço (Episódio sinistro de Virgulino Ferreira), o recifense Carlos Penna Filho dá ares epopéicos à guerra e a seus guerreiros. "Sobre um chão de sol manchado", começa, "passeavas pelos campos/o teu cangaço sem rumo./Com um olho na morte e o outro/no fel que se elaborava/ em tua vida sem prumo". E depois, definitivo, sobre o rei do sertão na pré-história da civilização brasileira: "Tua missão neste mundo/era governar o escuro:/acender uma fogueira/com os mil destroços da fúria".
O "estrangeiro"
O poeta carioca Alexei Bueno entrou na antologia de forma curiosa. Tendo escritos passados sobre o cangaço, ele foi convidado pelo organizador a cedê-los à publicação. Mas negou-se a permitir que seus poemas aparecessem na obra por intermédio de um soneto.
Resposta a um convite (poema inédito, 2008)
Para entrar, Carlos Newton, nesta obra
Só pela negação. Posso eu, um reles
Ser urbano e livresco falar deles?
Do seu tempo que em sonhos se desdobra?
Deles é a fúria, o fogo, a ínvia manobra,
O sol, o couro e o vento sobre as peles,
Rifle e punhal, a inveja dos imbeles,
As rezas contra o aço, e o chumbo, e a cobra.
Deles é a noite em claro e a aurora eterna,
A fronte dos astros, rubros céus abertos,
A alma que ninguém mais fere ou governa,
Lajedos, rasos, carrascais, desertos,
O ser que só ao mistério se prosterna,
A lenda onde ainda estão, rijos, despertos.
O CANGAÇO NA POESIA BRASILEIRA
De Carlos Newton Júnior. Editora Escrituras, 254 páginas. R$ 34.