Nos anos 1970 e 1980, Uday Veloso não saía do rádio nem da televisão. Tinha longos cabelos cacheados e um bigodão, vivia de terno ou casaca, às vezes de gravata borboleta, cheio de anéis e colares. Pinta de galã, voz bacaníssima, cantava um tal de samba joia (ele detesta a definição, mas era assim que o povo chamava) em que exaltava a mulher brasileira e trazia até Charlie Brown (sim, o dono do Snoopy) para conhecer a galera do Flamengo. De Uday (o nome é cigano, quer dizer chefe da tribo), ninguém se lembra. Mas Benito Di Paula (pseudônimo que adotou quando começou a cantar em boate), ah, desse não dá para esquecer.
Benito, o bem-amado, era uma espécie de Zeca Pagodinho da época. Teve até um programa de enorme audiência, o Brasil Som 75, na TV Tupi. Por suas contas, foram 28 discos lançados no país e 45 milhões de cópias vendidas em todo o mundo. ;Sou mais popular que os Beatles;, ri o cantor e compositor, que passou 13 anos sem gravar e está lançando seu primeiro DVD. Um disco ao vivo, cheio de ;clássicos; assinados por ele, gravado em 17 de julho numa casa chique, o Vivo Rio, em noite lotada.
Prestes a completar 68 anos (em novembro), Benito Di Paula está de volta com seu piano de cauda e o visual de sempre: terno, anéis, colares, pulseiras, enfeitado pra vida como ele gosta. A voz continua a mesma, mas os cabelos... ;Não é chapinha, não. Meus cabelos eram bem cacheados, mas com o tempo foram mudando. Acho que alguma química que usei fez com que eles ficassem mais lisos. Porque eu pinto cabelo, bigode, cavanhaque, pinto tudo, sabe?;
E foi com os cabelos lisos e à moda antiga ; casaca e calça vermelhas, blusa de malha rendada ; que Benito subiu, na maior emoção, ao palco do Vivo Rio. ;Sempre fico nervoso. Para o DVD foi pior porque eu não sabia como era. Agora tiro de letra, mas na gravação eu não sabia daquela coisa de parar. Tanto que não parei nem refiz nada;, conta ele, que escolheu 19 músicas para o roteiro e levou ao palco o irmão violonista, Ney Velloso, o sobrinho Kauan (cavaco) e o filho Rodrigo, que canta e toca piano em Beleza que é você, mulher (e está para lançar um disco também, chamado Samba de câmara).
A família é toda musical, mesmo. Benito conta que quando nasceu, em Nova Friburgo (RJ), havia um regional tocando na sala. Menino que cresceu ouvindo Jacob do Bandolim, Ataulfo Alves e Luiz Gonzaga, ele começou a cantar cedo, no regional do pai. Depois se mudou para o Rio, foi trabalhar em boates de Copacabana e de lá foi para São Paulo, onde gravou o primeiro LP (logo recolhido das lojas porque começava com Apesar de você, a música censurada de Chico Buarque), construiu sua carreira e mora até hoje.
Nunca houve ninguém no samba que tocasse piano como Benito Di Paula, que prefere os termos ;sambeiro; e ;pianeiro; porque não é ;brasilista;, e sim brasileiro. Como nem tudo pode ser perfeito, nem tudo pode ser bacana (já dizia ele em Assobiar e chupar cana), foi deixado de lado pelas gravadoras ; que nos anos 1990 só pareciam ter olhos para novos nomes do axé, do pagode e do sertanejo ;, mas continuou fazendo shows pelos quatro cantos do Brasil, sem se importar se o lugar era ;chique; ou não. ;Onde estou é assim: para o baile que eu vou tocar;, garante. E que baile ele dá.
Benito Di Paula tem um mestre e um rei. O mestre é Ataulfo Alves; o rei, Luiz Gonzaga. Para o primeiro, que o influenciou até na maneira de vestir (daí a gravata borboleta), ele fez duas músicas que estão no disco ao vivo: Do jeito que a vida quer e Como dizia o mestre. Para o segundo, que em Chapéu de couro e gratidão cantava ;como é bonito, Benito;, escreveu Sanfona branca, também regravada agora.
Ouça trecho da música Assobiar e chupar cana, com Benito di Paula
Com o rei do baião, ele chegou a dividir alguns shows. Com Tim Maia, aqui lembrado em Me dê motivo (Sullivan e Massadas), não. Benito estreou em disco cantando Tim (Azul da cor do mar), além de Taiguara, Toquinho, Roberto e Erasmo, mas nunca se sentiu parte da turma. ;Sempre fui um cara meio solitário, na minha, não era de badalação;, justifica. Nem por isso, deixou de lado as homenagens. O novo álbum é cheio delas ; ao mestre Ataulfo, ao rei Gonzagão, ao ;inesquecível; Tim Maia, ao pai e à mãe (;a saudade está sempre comigo;);
Em Unidos de Tom Jobim, uma das inéditas, ele ;pede com todo carinho a Zeca Pagodinho e ao Chico Buarque de Hollanda; para trazer ela de volta. ;É o meu sonho: fazer com que a Banda de Ipanema se torne uma escola de samba e vá desfilar na Marques de Sapucaí. Aí, em vez de Banda de Ipanema, vai se chamar Unidos de Tom Jobim!”, brinca. As outras (boas novas) são Pagode da cigana (;uma homenagem aos meus antepassados, com muito respeito e carinho;) e Quero ser seu amigo (;porque amor tem de ser amigo, esse é o verdadeiro amor;).
Em coro
O resto é para cantar junto, como fez a plateia que lotou o Vivo Rio em julho. Estão lá Retalhos de cetim, Mulher brasileira, Tudo está no seu lugar (;graças a Deus;), Ah, como eu amei, Maria Baiana Maria, Do jeito que a vida quer, Bandeira do samba, Beleza que é você, mulher, Violão não se empresta a ninguém e Osso duro de doer, que ele diz ter feito para um pessoal que estava a fim de puxar seu tapete (;e não acredito nisso, porque sou de família simples, meu tapete é o chão, a terra;).
Assobiar e chupar cana, aquela em que comenta como seria bom, como seria legal se cantor e compositor pudesse ser ator ou jogador de futebol, ganha até um time imaginário no fim. Na brincadeira, Benito cita Paulinho Moska, Alcione, Maurício Mattar, Zeca Baleiro, Grupo Revelação. E escala Jorge Ben Jor para dar a paradinha e marcar o gol. No fim de Charlie Brown, a homenagem é para a plateia. ;Eu tinha a certeza de que Deus e Nossa Senhora iam me trazer de volta. Fiquei um pouco jogado fora, de lado, mas amado por vocês;, diz ele, para ouvir em seguida um demorado ;aaah; dos fãs. Com o jogo ganho, dá a deixa: ;Agora vou cantar mais para vocês;. Era o que todo mundo ali queria ouvir.
Cinco perguntas - Entrevista com Benito di Paula
Você não lançava um disco desde 1996. O que aconteceu? Brigou com alguém? Ou as gravadoras simplesmente se desinteressaram?
É, foi uma época em que estava na onda aquela misturada que acharam que ia pegar. Era um modismo. Não briguei com ninguém, não. Sigo o lema de John Lennon, a vida é muito curta, não há tempo para brigas. É assim, acontece, bola pra frente. Nunca parei de trabalhar, moro no avião. Só parei de gravar. Agora estou muito contente com a EMI, eles têm me dado muita atenção.
Nesse período sem gravar, você seguiu fazendo shows pelo Brasil. Continuou compondo também?
Quem trabalha na música é como médico: não dá pra parar. Mas não sou daqueles caras que dizem ;agora vou compor;. A arte de compor é sagrada. Não tem explicação. Componho quando Deus permite.
A música sempre foi presente na sua casa, seu pai tinha um regional... Você começou com ele?
Quando eu era criança, tinha muita música lá em casa. Meu pai tinha um regional chamado Arame Farpado. Ele tocava cavaquinho, bandolim, acordeão, violão de 7 cordas... Minha mãe gostava de cantar, mas só em casa. Comecei a cantar com papai no regional, muita música brasileira, chorinho, música complicada.
Depois do regional, você foi trabalhar em boate. Quando se deu conta de que era um cantor de sucesso?
Quando eu cantava com papai eu já fazia sucesso. Porque muito artista pensa que sucesso é o disco. Mas sucesso é o artista, é o talento. Se não tiver talento, não adianta nada. Muita gente acha que fiz sucesso logo. Não é verdade. Trabalhei durante 16 anos na noite. Comecei com 17. Quando saí de Nova Friburgo para morar no Rio, no Morro da Formiga, e cantar nas boates de Copacabana, era porque eu precisava ajudar a família. Tinha a certidão emancipada para poder trabalhar.
É verdade que pedia a Deus para ser cantor de boate?
É, sim. Queria ser músico de boate, eu pedia a Deus para ser músico de boate. Mas ele achou o meu pedido muito fraco: ;Não, você vai ser artista;. E graças a Deus, a gente está aí, né? Sou cantor do povão, mesmo. Com muita honra.