Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Gracias a la vida, Mercedes Sosa festejava a liberdade da democracia

Se uma pretensa unidade latino-americana existir, essa ligação não encontra melhor representante do que a figura da cantora argentina Mercedes Sosa. La Negra, como é conhecida em seu país em referência a cor dos longos cabelos lisos, herança índia da guerreira nascida na província de Tucumán, morreu às 5h15 de ontem, aos 74 anos, no Hospital Trinidad, em Palermo, Buenos Aires, por complicações hepáticas e pulmonares. Símbolo contra os regimes ditatoriais que infestaram o continente durante as décadas de 1960 e 1970, a potente voz de contralto acalentou sonhos de luta, liberdade e resistência.

O começo da carreira de seis décadas, ligado à música folclórica argentina, se transformou em interpretações arrebatadoras de canções com forte conteúdo político. O que desagradou aos generais da ditadura militar de seu país e forçou a partida da cantora para a Europa, entre 1979 e 1982. ;Gostaria de esclarecer que jamais estive exilada de minha pátria como também não havia uma proibição formal para que eu não me apresentasse lá. Só não eram executadas as músicas de conteúdo social;, esclareceu, em entrevistas, após o retorno à Argentina.

Foi por esta época que Mercedes estreitou sua relação com artistas brasileiros e se transformou em ícone da resistência contra a nossa ditadura. No repertório de La Negra, foram incluídas canções como Gente humilde, de Garoto, Chico Buarque e Vinicius de Moraes, e Coração de estudante, de Milton Nascimento e Wagner Tiso. A cantora se apresentou em terras brasileiras ao lado de Fagner, Chico Buarque, Gal Costa, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Beth Carvalho. ;O Brasil me ajudou muito. Nenhum país teve comigo tanta atenção, amor e carinho. Amo esse país;, declarou à plateia do último show feito em Brasília, em maio do ano passado, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães.

Em 1989, ela foi uma das principais atrações do Festival Latino-Americano de Arte e Cultura (FLAAC) que reuniu cerca de 500 artistas latinos, organizado pelo então reitor da Universidade de Brasília Cristovam Buarque. ;As músicas dela marcaram muito a minha geração. Mercedes é um ícone latino-americano. Ela foi como um Che Guevara da música;, comparou Buarque.

[SAIBAMAIS]A mulher que nunca se deixou limitar por fronteiras ou preconceitos será lembrada pelos versos da canção Gracias a la vida, imortalizados pela sua voz. O corpo da cantora foi velado na sede do Congresso argentino e os restos mortais serão cremados hoje, em uma cerimônia íntima, no Cemitério de Chacarita. As cinzas serão espalhadas por Tucumán, Mendoza e Buenos Aires.

Doces lembranças

A cantora e compositora Miúcha ficou emocionada ao lembrar-se da primeira vez em que esteve com Sosa, na década de 1990, no Rio de Janeiro. Fã declarada, a artista afirma que ela contribuiu para que o Brasil aprendesse mais sobre a diversidade cultural dos países vizinhos. ;Eu descobri que ainda não tínhamos tomado conhecimento da riqueza cultural da qual estávamos cercados. Ela foi essa ponte de conhecimento;, aponta Miúcha.

A mesma sensação tem a amiga de muitos anos Beth Carvalho, que se inspirou na diva para a composição de seu repertório: ;Nós sempre fomos muito parecidas na maneira de pensar, de lutar. Sempre conversávamos sobre isso e achávamos que o artista não serve só para cantar, mas para expressar uma luta, um pensamento, e isso ela fazia com perfeição;. Em 1986, a cantora carioca convidou Mercedes para a gravação do disco Beth, onde cantaram juntas a música So le piedo a Dios: ;Nós éramos tão amigas que, quando ela vinha ao Brasil, dizia que era para ver a mim e ao Milton (Nascimento);.

Também parceiro de muitos anos, o cantor Fagner salienta que a artista fez de suas músicas um grito de alerta para as mazelas da sociedade: ;Ela conseguiu fazer do talento dela a bandeira de luta de todos nós;.