Ricardo Daehn
postado em 22/09/2009 14:18
Nos últimos quatro anos, o crítico Luciano Ramos assistiu a quase 2 mil filmes. De maneira sistemática, evitando ;o dado anedótico e a curiosidade vã;, ele estruturou os comentários que renderam mais de 300 páginas de Os melhores filmes novos ; 290 filmes comentados e analisados. Com olhar diferenciado, de quem é formado em ciências sociais e há mais de 30 anos exerce função de crítico, Ramos (conhecido pela lida na Rádio Cultura paulista e como professor de pós-graduação) aplica a façanha de ser breve, mas nunca superficial, e de inserir certa ousadia nos textos. Para avaliar O segredo de Brokeback Mountain (;superestimado;), por exemplo, arrisca reproduzir um poema de Carlos Drummond de Andrade, como chave para o entendimento da fita.
No livro, gêneros corriqueiros como drama e comédia, figuram ao lado do capítulo ;história;. É nítido o compromisso com a preservação de valores. No texto dedicado à animação Wall-E, o autor cita o respeito ;à memória cultural; implícito no filme, enquanto Alexandre (de Oliver Stone) é exaltado pela ;reconstrução da metodologia (de batalha) da Macedônia;. O autor, que elogia Amantes constantes, por ;não soar panfletário nem politicamente engajado;, não se faz de rogado, embutindo nos textos uma perspectiva contemporânea às análises. Alerta para a ;manipulação das consciências pelo Estado;, como tema de A conquista da honra (de Clint Eastwood) e para o exame à la John Ford e Alfred Hitchcock, visto em David Cronenberg (de Marcas da violência) que expõe ;a agressividade subjacente à sociedade americana;.
Ao encarar o fantasioso V de vingança como um suspense político protagonizado por herói (;um terrorista refinado;) associado a ;manifesto em favor das liberdades individuais;, Ramos cutuca a atual conjuntura internacional. Neste cenário, o cineasta Paul Haggis é duplamente elogiado: No vale das sombras (2007) desponta como ;antimilitarista, o primeiro filme realmente importante desde o atentado de 11 de setembro; e Crash ; No limite (2005) representa ;uma espécie de maquete deste inferno urbano em que vivemos;. O pessimismo igualmente demarca o comentário de As loucuras de Dick e Jane, cujo roteiro, pelo que defende Ramos, se vale da ;visão cruel do capitalismo atual, capaz de punir quem trabalha honestamente e premiar os especuladores e os malandros;.
No recorte reservado ao cinema moderno, existe ainda espaço para o humor, como exalta o exame de Volver, em que o autor arrisca delinear propósitos de Pedro Almodóvar: ;É como se ele estivesse dizendo: ;Ainda que a vida às vezes se pareça com um melodrama gótico inglês, ela tende muito mais para a comédia italiana ou para a chanchada brasileira;;. Quando o assunto é cinema nacional, o crítico preza a simplicidade filmes como 2 filhos de Francisco ; A história de Zezé di Camargo & Luciano e Bendito fruto, um ;espetáculo popular e de alto nível;, que, ele mesmo lamenta, não haver encontrado o público adequado. Na contramão desse relativo fracasso, o autor celebra a ;autenticidade; esbanjada no sucesso de Juno e a convincente excentricidade vista no ;frescor; de Pequena Miss Sunshine.
Convergência
Recursos interessantes para avaliações em torno de produtos culturais, tanto a estrutura metafórica quanto o vasto apanhado comparativo estão incorporados no texto. A menina santa, da argentina Lucrecia Martel, por exemplo, gera a inesperada comparação com o mestre Robert Bresson, por Martel ;sobrecarregar de significado; uma temática aparentemente primária. Sacha Baron Cohen (em pauta pela exibição de Bruno), pelo amalucado tipo vivido em Borat, motiva a pecha de ;um misto de Groucho Marx, Jerry Lewis e Peter Sellers;.
Já no campo metafórico, sem abusos, o pesquisador vê as dramáticas personagens de Fatal, como ;signos que se movem sob o manto protetor e inspirador do pintor Goya; e aproxima, pelos mesmos dramas de reconciliação que vivem, tipos como Mickey Rourke (de O lutador) e Melvil Poupaud (de O tempo que resta). Capítulo à parte, pela intensa coesão, a convergência de tratamentos percebida entre os documentários nacionais também concentra interesse. Realidade e encenação travam diálogo nos comentários de Jogo de cena, Serras da desordem e Pan-cinema permanente.
Tendo como critério o destaque em ao menos quatro dos cinco elementos (argumento, roteiro, elenco, produção e direção) referenciais das obras, Luciano Ramos (nas décadas de 1980 e 1990 associado à edição do seminal Guia de filmes) não se exime de apontar as percepções de linguagem, em longas-metragens como o enigmático O veneno da madrugada, O novo mundo (dotado de ;originalidade poética;) e Desejo e reparação, no qual ;poucas vezes na história do cinema, uma narrativa se uniu tão organicamente a uma trilha sonora;. Tudo isso na boa aula de síntese disposta em Os melhores filmes novos.
OS MELHORES FILMES NOVOS ; 290 FILMES COMENTADOS E ANALISADOS
Livro de Luciano Ramos. Editora Contexto, 336 páginas. Preço: R$ 43.
Trechos
Árido movie (2005), de Lírio Ferreira
;Retrato de um universo sertanejo atual, em que o excesso de informação convive com a falta de água;
A concepção (2005), de José Eduardo Belmonte
;A princípio, do ponto de vista formal, o filme se mostra caótico como os personagens, porque incorpora diversos códigos, estilos de narração e recursos técnicos como o vídeo e o cinema digital. Mas a lógica da direção acaba se impondo e logo percebemos o sentido específico de cada fragmento;
Nome próprio (2007), de Murilo Salles
Para o crítico, a personagem central (inspirada na blogueira Clarah Averbuck) tem as ;palavras como abrigo e prisão; e ;vive como uma espécie de cigana, cuja tribo se encontra em toda a parte e em lugar nenhum;
O cheiro do ralo (2006), de Heitor Dhalia
;Tudo é muito engraçado e revelador da carência de
sentido deste mundo em que tudo está à venda;
Não por acaso (2007), de Philippe Barcinski
;Um sopro de inteligência e novidade na cinematografia nacional, que vem se concentrando num discurso informado pelas determinantes sociais, históricas e políticas do país;