Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá emocionam a plateia com músicas da Legião Urbana

Fazia quase uma hora que Os Paralamas do Sucesso tinham saído do palco montado na Esplanada dos Ministérios quando Renato Russo apareceu no telão, diante da multidão. ;Não, vocês erraram!”, reclamava ele, brincando com o público, na hora de Índios. Na sequência, trechos de shows, os telejornais anunciando a morte do cantor, Dado Villa-Lobos contando o pacto que eles tinham (;A Legião éramos eu, Renato e Bonfá, se saísse um, não seria mais a Legião Urbana;), o ensaio feito dois dias antes, eles no aeroporto, Marcelo Bonfá no avião, e a placa: ;Bem-vindo a Brasília;. [SAIBAMAIS]A plateia já berrava com as imagens do telão quando, às 21h50 de domingo, Dado e Bonfá apareceram no palco do Porão do Rock com os uruguaios Mateo Moreno (baixo), Guzmán Mendaro (guitarra) e Gustavo (teclados) e o primeiro cantor convidado da noite, André Gonzales (Móveis Coloniais de Acaju), em Tempo perdido. Outros cinco assumiriam os vocais nas músicas seguintes: Herbert Vianna (Ainda é cedo), Philippe Seabra (Geração Coca-Cola), Toni Platão (Eu sei) e os uruguaios Sebastian Teysera (Quase sem querer) e Juan Casanova (Será). Bonfá também cantou Pais e filhos e todos se juntaram no final, em Que país é este. Um microfone, no entanto, não foi usado por nenhum deles. Ficou no centro do palco, desligado, com duas flores brancas penduradas. ;Não dá para substituir Renato, chamar apenas uma pessoa. Legal é ter vários cantores, fazer uma celebração;, explicava Dado Villa-Lobos antes de subir ao palco, feliz da vida por poder participar da festa em homenagem ao rock de Brasília. ;Não tinha como a gente não estar aqui esta noite. Brasília vai fazer 50 anos e a história de pelo menos 25 deles passa por essa rapaziada que está no palco.; Dado estava feliz, mas um pouco preocupado. Não sabia como seria a reação do público à volta dele e de Marcelo Bonfá, 21 anos depois do quebra-quebra no Estádio Mané Garrincha, no último show da Legião Urbana aqui. ;Fica na lembrança, né?; PJ, baixista do Jota Quest, também tem forte na memória aquele 18 de junho de 1988. À época, era um garoto de 18 anos que, assim como tantos outros de Brasília (ele morou aqui entre 1973 e 1991), tinha uma banda de rock. ;Comecei a tocar aqui. E eu estava lá no Mané Garrincha. Veja que loucura: quando poderia imaginar que eu estaria no próximo show deles em Brasília, tocando com eles? É inacreditável;, comemorava PJ, que subiu ao palco no fim do show, em Que país é este. André Gonzales foi outro que ficou muito feliz com o convite. ;Participar de uma celebração como essa é maravilhoso. Mas confesso que fiquei meio apreensivo, porque tenho uma memória péssima;, ria. Marcelo Bonfá também adorou estar naquele palco: ;Remocei 10 anos ao tocar com essa galera nova;. No gramado Na plateia, a história também foi bem diferente da de 21 anos atrás. Meninas choravam, pessoas gritavam, e a cada intervalo lá vinha o coro: ;Uh, Legião! Uh, Legião!”. Lívia Leite, 34, técnica de enfermagem, chorou o show inteiro: ;Quando eu tinha 13 anos e andava com o pessoal do rock, curtia os shows na Esplanada como agora. Parece que eles não envelheceram, o jeito de cantar é o mesmo, como se o Renato também estivesse no palco;. Heloisa Melo, estudante de 16 anos, não viveu os anos 1980, mas nem por isso parou de chorar: ;Fui apresentada ao trabalho da Legião pela minha mãe. Me tornei uma fã tardia pelas mensagens que eles passam e a história de força. Me emocionei ao perceber que passaram quase 20 anos. Parece que voltei num tempo que não vivi;. Dado Villa-Lobos achou a resposta do público ;sensacional;. Já tinha pensado em fazer alguns shows especiais com Marcelo Bonfá, ;para celebrar aquelas canções;, mas o projeto só foi adiante depois do show que os dois fizeram em Montevidéu, em dezembro, a convite de artistas uruguaios, que selecionaram 20 músicas da Legião Urbana para apresentar numa casa chamada La Trastienda. ;Eles é que montaram o repertório, nós fomos lá para acompanhá-los. Seria um show para mil pessoas, mas a gente fez no dia seguinte também. Foi incrível;, conta. ;O mais interessante foi ver que a música que fizemos há tanto tempo tinha cruzado fronteiras. A gente mal tocava no Brasil.; A ideia, agora, é fazer uma série fechada de shows ; ;sete, no máximo; ; em 2010, com esses mesmos músicos uruguaios e vários cantores convidados. Para ele, só faz sentido se for assim. ;Esses rumores (de uma volta efetiva da Legião) são equivocados. A gente nunca pensou em substituir o Renato e voltar a trabalhar com a Legião Urbana;, afirma. ;Isso é um absurdo;, reforça Toni Platão, apontado na semana passada como o provável ;substituto; de Renato Russo nos vocais. ;A única coisa que tenho nos meus 25 anos de carreira é a minha integridade artística. E eu jamais faria uma burrice dessas. Canto Legião no meu show, toco com Dado e Bonfá e posso fazer um ou outro show com eles. Mas prestando tributo à Legião, cantando uma música, ao lado de outros cantores. Jamais teria o topete de pegar o lugar de Renato Russo. Esse lugar é dele. Não está vago. Ele está aqui, o tempo todo. Você não sentiu?; Colaborou Marina Severino Artigo Identidade brasiliense Carlos Marcelo Surpresa: riso e choro se misturam no momento mais aguardado da segunda noite do Porão do Rock. No palco, radiante, o vocalista André, do Móveis Coloniais de Acaju, pula e abre imenso sorriso enquanto canta Tempo perdido. Na primeira fila, espremidas na grade, cinco garotas estão aos prantos ; tinham começado a chorar na exibição do vídeo que antecedeu a entrada dos músicos da Legião e funcionou como senha para a catarse coletiva. E aumentaram o volume do choro ao escutar a introdução dedilhada por Dado Villa-Lobos. As cinco meninas certamente não tinham idade para ter assistido, em 1988, ao último show da Legião em Brasília. Então, para elas e tantos outros jovens que passaram pela Esplanada, aí vai uma certeza: o que se ouviu na noite de domingo foi Legião Urbana, não uma banda cover. Mas o microfone posicionado no meio do palco, com duas rosas brancas no pedestal e desligado, delimitava os limites de Dado e Bonfá: por meio de um símbolo forte, avisavam que a banda não estava completa ; e caberia ao público, mais do que aos convidados, preencher mentalmente o vazio do rosto e da voz de Renato Russo. ;A Legião Urbana são vocês;, lembrou Bonfá, repetindo as palavras do líder. Antes e depois da entrada dos músicos da Legião, porém, Brasília foi passada a limpo em suas diversas encarnações roqueiras ; metal contra as nuvens que ameaçavam chuva, punk contra os detritos produzidos ali mesmo, no centro do poder; sair da garagem para azarar na W3, misturar Luiz Gonzaga e hardcore; lembrar da piscina de ondas, do coreto do Gilberto Salomão, dos muitos porteiros e das pessoas normais. Independente da sonoridade ou década, todos com a mesma identidade. Os organizadores acertaram ao tratar o passado musical não como peça de museu, mas como parte contínua de uma mesma realidade roqueira ; e assim deve ser vista a aparição, por exemplo, do seminal Escola de Escândalo e seus clássicos (Luzes, Complexos) tortos e desengonçados, pintados em estilo naif (se Brasília já foi Seattle, eles são os nossos Melvins). E da (ainda) feroz Plebe Rude, que, aditivada por músicos das gerações 80, 90 e 00, comprovou ser a banda certa para um país que deu errado ; mas isso é outra história, dos tempos de confronto. Agora o que reina é a necessidade de acolhimento. De volta à catarse. Vêm Pais e filhos, Eu sei, Ainda é cedo (o momento monumental da noite, com os três Paralamas e Dado em estado de graça), Geração Coca-Cola; as cinco meninas não param de chorar. Atrás delas, a plateia incorpora o espírito de arquibancada de estádio (Mané Garrincha, enfim, exorcizado?) e comemora: ;Ô, A Legião voltou, ô, a Legião voltou, ô;;. Estão enganados. A Legião não voltou porque nunca tinha ido embora. As canções de Renato Russo, Dado e Bonfá ; e as de Fê, Flávio, Pretorius, Dinho, Loro, André X, Philippe, Jander, Gutje, Gerusa, Fejão, Bi, Herbert, para ficar apenas em nomes da geração 80 ; estão entranhadas entre blocos, quadras, eixos, asas, monumentos, palácios e ruínas de concreto. Perplexos, ainda perguntamos que país é esse; surpresos, ainda nos questionamos que cidade é essa. Música urbana, inconsciente coletivo: eis o patrimônio imaterial brasiliense.