Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Policial em tom de galhofa

Em novo livro, Lourenço Cazarré narra o assassinato ocorrido em congresso de escritores

Nas primeiras páginas de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar, o narrador avisa: a história que vai contar não comporta ;enredos óbvios; nem ;personagens chapados que marcam a produção dos coleguinhas;. O personagem, um jornalista prestes a se envolver em uma investigação policial, carrega todos os clichês do repórter policial dos anos 1950. Com uma visão irônica e debochada, ele será o responsável por narrar o caso do assassinato de autora de romances policiais durante congresso de escritores em Brasília. A história nada tem de novidade na trajetória de Lourenço Cazarré, autor do romance. O personagem-narrador nasceu há quase duas décadas, quando o escritor aceitou um convite de jornal brasiliense para escrever um folhetim policial de 20 capítulos na década de 1990. ;Publiquei ao longo de 20 semanas e é praticamente a história que está no livro.Aprofundei os personagens, fui desenvolvendo, mas a trama era mais ou menos a mesma;, conta Cazarré.

A trama é quase uma comédia. Aficcionado pela literatura policial, o autor criou personagens inspirados nos escritores que mais admira e deu a eles nomes e personalidades caricaturais. Lady Águeda Christine tem sotaque mineiro e Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáya vem da Rússia, mas fala arretado que nem nordestino enquanto Georges Sim et Non parece um extrovertido carioca e Foo Lee Shi Man fala português como se tivesse nascido no Bexiga, em São Paulo. Por último, Dax Chamber tem a alma (e a entonação) para lá de gaúcha. ;Os personagens são baseados em escritores, só o chinês não era, mas eu estava lendo coisas meio zen budistas e gostei daquela linguagem patife religiosa. Para o americano misturei dois autores que lia muito (Dashiel Hammet e Raymond Chandler). Como acontecia no Brasil, resolvi unificar a linguagem deles em português e fiz essa brincadeira de dar aos personagens uma voz regional.;

O jornalista é escalado para cobrir um congresso de escritores na capital e se depara com todos os seus ídolos literários ao chegar ao Hotel Brasília Palace. No entanto, um dos participantes é assassinado e o que seria um congresso se transforma em trailer policial. Os escritores estrangeiros, embora falem português, desfilam uma série de clichês sobre os modos brasileiros, que faz a narrativa mergulhar num pastiche de história policial. Mas Cazarré não encara o livro como um romance do gênero. ;Seria um romance policial satírico, uma sátira aos romances policiais. Na verdade é um livro em que o tema é a literatura policial.;

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar não é a primeira incursão de Cazarré na literatura policial. Ele já explorou o tema em algumas de suas 10 novelas infanto-juvenis e nos contos O frio pegajoso do medo e A las cinco en puto de la tarde, publicados na coletânea Contos de mistério e suspense. Ao ler os fragmentos do folhetim publicado há quase duas décadas, um amigo sugeriu juntar tudo em um romance. Nas primeiras 10 páginas, Cazarré introduz o narrador e faz um retrato jocoso de Brasília. Política é o alvo principal dos ataques. ;E o jornalista é da geração da ditadura. Todo mundo era meio cínico na época, meio irônico e debochado porque não acreditávamos em nada. Como a história se passa no final dos anos 1970, achei que ele seria um jornalista típico, irônico, brincalhão;, explica o autor, que nasceu em Pelotas e mora em Brasília desde 1977

A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR
Lourenço Cazarré. Bertrand Brasil, 176 páginas. R$ 29


Leia trecho do livro A misteriosa morte de Miguela de Alcazar, de Lourenço Cazarré

Comecemos do início.

Não é moderno, sei. Escritores sofisticados preferem contar suas histórias de trás para diante ou aos saltos, indo e voltando. Uns mais arrojados escrevem até mesmo livros que não têm nem história nem personagens. Mas sou jornalista de profissão e, como todos do meu ofício, pratico o texto claro, legível e cronológico.

Aceito, porém, as críticas que nos fazem. Admito que, em geral, os redatores jornalísticos partem sempre de um mesmo princípio: o leitor é uma besta, e a ele deve-se facilitar tudo. Concordo quando dizem que enredos óbvios e personagens chapados marcam boa parte da produção literária dos coleguinhas.

Porém, não foi essa a orientação adotada aqui. Acreditamos, desde a primeira linha, que esta obra destina-se a um leitor requintado, conhecedor dos clássicos da literatura policial.

Embora comportado no estilo, este livro fornece ao leitor um elevado número de frases rebuscadas ; na maioria irônicas ; que poderão ser usadas, depois, com grande proveito, em conversações inteligentes.