O talentoso diretor e roteirista Jorge Furtado ; dos filmes O homem que copiava e Meu tio matou um cara ; conseguiu uma proeza: criar um Decamerão com a libido do Sítio do picapau amarelo. Nem o rápido vislumbre da nudez de Deborah Secco ajuda a superar o ar pudico da série da Globo, que careceu de naturalidade e de uma interação mais sensual entre os personagens. Adaptações sempre são complicadas. Especialmente aquelas de grandes obras. Caso do Decamerão, texto de Boccaccio elogiado há cerca de sete séculos. Primeiro, por uma inevitável comparação com o original, na qual as novas versões costumam sair perdendo. Depois, pelas modificações da linguagem original para a tevê, o que requer grandes alterações.
Fica claro, porém, a decisão do diretor de montar um Decamerão sem o exagero de certas produções que sempre escorregam para o caricato, na qual os personagens ; especialmente os nordestinos ; se movimentam feito calangos embriagados. Parece que aqui a forma ordena o conteúdo. De qualquer maneira, é importante reiterar que há em todo o livro um forte sentimento de gozo da vida, de busca pelo prazer e pela felicidade terrena que fazem de Boccaccio um precursor do Renascimento e do Humanismo. Seus personagens são figuras intensas, nem sempre humorísticos, mas de grande emoção. Numa das novelas do livro ; o Decamerão tem uma centena delas ;, o pai cruel envia para a filha o coração do amante dela em uma taça. Ela mistura veneno ao sangue, bebe e se mata.
A produção da série ; que exibe amanhã seu terceiro capítulo ; conseguiu reencontrar na serra gaúcha o ambiente rural da Toscana, com suas casas de pedra, morros baixos e plantações. A interpretação dos atores é notável, em especial Drica Moraes, em ótima performance. A fotografia, lindíssima, demonstra todo o poder de fogo da tevê digital. O tubo de imagem já é peça de museu.