Quando recebeu a notícia de que tinha câncer, Ruy Castro havia começado a escrever sobre Carmem Miranda. "Que inferno, vou atrasar o livro", reagiu. Curado, só reclama dos parentes dos biografados, sempre a postos a ameaçar com processos. Tudo por dinheiro. Sem outras pressões, ele pode dizer que vive de escrever há 42 anos. Nesta entrevista, ele fala ainda sobre música, jornalismo e humor.
Dá para viver como escritor no Brasil?
Perfeitamente. É diferente de viver de escrever. Eu sei escrever para todas as modalidades: jornal, revista, livro, roteiro de disco infantil. Só não escrevi bula de remédio. É diferente de você viver de literatura, isso é muito mais difícil. Agora, viver de escrever é perfeitamente possível. Não faço outra coisa há 42 anos.
É fácil ser biógrafo no Brasil?
Não, é muito difícil porque são necessárias certas aptidões especiais para fazer esse tipo de trabalho. É preciso ter gana, um apetite insaciável por informação. Depois, uma gana incontrolável para conseguir a informação. Na maioria das vezes isso não é fácil porque o acesso aos arquivos muita vezes é dificultado. Às vezes os arquivos são desorganizados ou as pessoas não guardam nada e deixam que os documentos se percam. Também é mais difícil conseguir patrocínio, não permitindo se dedicar só à biografia. E ultimamente tem aumentado a dificuldade devido a indústria do herdeiro porque cada vez mais um filho, neto, sobrinho, bisneto, cunhado ou outro parasita qualquer que, provavelmente nunca teve uma relação com seu parente ilustre, resolve processar, em vista de dinheiro, claro, toda vez que um biógrafo se atreve a fazer um livro sobre seu parente.
Logo quando lançou a biografia da Carmen Miranda você disse que não escreveria mais biografias e se dedicaria a explorar outros gêneros literários. Além do romance o que mais você apostaria?
Eu disse isso também quando terminei a biografia do Garrincha, em 1995. Na verdade quando termina uma biografia você sai tão exaurido, aquela pessoa que você biografou exige tanto de você. Depois, o livro sai e você relê e não consegue acreditar na quantidade absurda de informação que tem ali. Às vezes, nem se lembra da dificuldade que foi para conseguir. É um processo realmente exaustivo que dá vontade de procurar outras coisas menos trabalhosas. Mas, de repente, vem um personagem em sua cabeça, algo que acontece naturalmente, como num estalo. No meu caso quando vem um estalo eu paro para pensar e descubro que aquele personagem já morava 10, 20 30 anos dentro de mim. E é por isso que é estimulante, porque você se jogar na vida daquela pessoa. Leve dois anos no caso do Nelson Rodrigues, três ano no do Garrincha, cinco no caso da Carmen Miranda. Ficava vivendo em função daquele personagem. Não há dinheiro que pague, nada que pague, a não ser a satisfação terminar um trabalho e dizer: "realmente melhor do que isso eu não poderia fazer".
Você não acha que o humor no Brasil hoje em dia anda mal das pernas?
Eu não procuro humor explícito. Não vejo cartunista produzindo regularmente, não há nem veículo para isso. Acho graça de muita coisa por aí, letra de música, por exemplo. Já fiz de tudo numa redação nos mais variados estilos de revistas. Uma coisa é você escrever no Pasquim, comecei a trabalhar no número sete do tablóide. Outra coisa é escrever no Estadão, onde fiquei por 10 anos. Acho que o jornalista tem que dominar diversas linguagens, não que tenha que ficar se adequando, mas precisa ter bala para toda a espécie de revolver.
Jornalista sem diploma funciona?
Eu sou um caso típico. Tomei bomba na faculdade de jornalismo, tirei 10 em português e 2 em história. No ano seguinte tentei ciências sociais, passei e milagrosamente completei o curso. Me formei como sociólogo, colei grau, mas não tive coragem de buscar o diploma. Achei que era vergonhoso demais. Na verdade nunca pensei em exercer essa profissão, sempre fui jornalista e em todo lugar que trabalhei ninguém me exigiu diploma. Trabalhava ilegalmente e não demorou muito para entrar em vigor uma lei que exigia o diploma. Mas fui ilegal a vida inteira. Essa medida aí me botou na legalidade de novo. Só que não preciso mais dela. (Risos). Trabalhei com milhares de jornalistas, com os mais fabulosos do Brasil. Passei por 10, 15 redações de jornais e revistas e não via jornalistas diplomados e todos eram espetaculares. Claro que naquela época, pelo fato de não existir diploma, havia uma abertura para picareta, oportunistas, gente que usava o espaço no jornal para fazer negócio. A exigência do diploma barrou esse tipo de coisa, ou seja, os pseudoprofissionais. Mas muita gente boa deixou de trabalhar em jornal porque não tinha diploma.
Você acha que o jornal impresso vai perder a guerra contra a internet?
Antigamente eu achava que não, agora já fico na dúvida. Os jornais realmente precisam se reciclar, mudar de atitude senão vão ficar para trás. Engraçado que no Brasil os jornais estão crescendo em circulação e em vendas, no resto do mundo, não. Mas não faz sentido realmente ser informado pelo rádio, pela televisão e pela internet às 7h da manhã que caiu um avião levando 300 pessoas e ver 24h depois as manchetes dizendo exatamente isso. É suicídio. Parece que você está lendo o jornal de ontem.
Hoje está cada vez mais difícil ouvir música de qualidade no Brasil?
Não sei, ouço música de qualidade o tempo todo. Tenho 4 mil cds em casa, então não tomo conhecimento do que está rolando por aí. Mas tem muita coisa boa acontecendo, na área de samba principalmente. Vivemos no momento uma volta espetacular do samba e da música instrumental brasileira. Lá no Rio pelo menos, o cenário é de uma riqueza fabulosa. Pode sair toda noite de casa para rua que vai ouvir boa música.
A violência urbana cresce a cada dia no país. Quem são os culpados?
Muita coisa. O mundo inteiro ficou muito mais violento. Tenho até umas teorias meio particulares com relação a isso. Por exemplo, a principal causa da violência é a droga, a venda e o combate dela. Tudo o que se refere à droga gera violência. Mas a excessiva amplificação da música também é uma forma de violência. Há uma certa brutalidade de certos gêneros e estilos musicais que estão por aí, uma pancadaria interminável, num volume altíssimo. O Tom Jobim sempre falava: música serve para tudo, para dançar, namorar, beijar, cozinhar e inclusive para fazer guerra e matar. Não é à toa que quando os exércitos iam marchando, na frente iam os taróis e os tambores para estimular o sentimento de luta do soldado. Grande parte da música contemporânea é um estimulo permanente ao ódio, à intolerância e tudo mais. Ou seja, deixou de ser importante a procura da beleza. É uma coisa inacreditável.
E a Seleção Brasileira?
Hoje, o futebol brasileiro vive uma falta de criatividade, de tesão, falta de espírito de luta mesmo. Se fossem todos gênios, mas não. São um bando de burocratas que ficam dando carimbada na bola.
Você é mineiro, mas mora há muito tempo no Rio de Janeiro. Você acha que se adaptaria bem em Brasília?
Não, jamais. Não dirijo carro, tenho horror a automóvel.
Uísque, cerveja ou vinho?
Parei de beber há 21 anos.
Recentemente você passou por sério problema de saúde. Depois do susto você brincou dizendo que parou de comer torresmo no café da manhã. Como você se sente hoje?
Mas já voltei (risos). Não, tive um câncer bravo quando estava escrevendo o livro da Carmen. Eu tinha acabado de começar, com 50, 60 páginas escritas quando tive o diagnóstico. Passei por tratamento brutal. Minha primeira reação quando recebi a notícia foi: "Que inferno, vou atrasar o livro" Juro que não pensei que ia morrer e nada, pensei que ia atrasar o livro. Não dei bola para a doença%u2026
O que você faria para incentivar mais a leitura no Brasil?
Abriria a maior quantidade possível de bibliotecas. Porque é a única maneira que você tem de aumentar as tiragens, reduzir os custos do livro e botar o maior número de livros nas mãos do maior número de pessoas. Como o Luiz, do Açougue T-Bone está fazendo, um projeto espetacular. Acho que deveria ser uma política do governo abrir bibliotecas em todos os lugares porque se o livro estiver disponível, as pessoas vão a ele.