Nego M.A.L.A. (Marco Antônio Lopes de Almeida, auxiliar de pedreiro e pai de dois filhos), o lanterneiro A.G.R. (na certidão de nascimento Adalberto Gomes Rodrigues) e a estudante Luana, 17 anos, formam um coletivo de hip hop que compõe letras sobre denúncia social, truculência policial e abandono do Estado. Os rapazes, ambos de 24 anos, sobrevivem com baixos salários e se desdobram para produzir disco e shows. O enredo dessa história é comum a tantos grupos que vivem na cidade grande. No entanto, os protagonistas dessa rima carregam algo de inusitado. Fazem música de protesto em Formosa, cidade goiana a 60 quilômetros de Brasília. Lá, produzem aquele que será o primeiro disco de rap totalmente feito no município baseado no agronegócio.
Surgida no século 17, durante o período da mineração, Formosa viu a população aumentar exponencialmente, a partir da inauguração de Brasília, até atingir o recente inchaço de 90 mil habitantes. O crescimento desordenado deu margem a bairros periféricos semelhantes aos das metrópoles. O choque de tradição e modernidade povoa o imaginário da cidade, antes ligado à cultura caipira, com histórias de violência e criminalidade urbana. "Falamos sobre nossas experiências cotidianas, mas não gostamos de generalizações. É bom frisar que a letra de Gambé se refere à banda podre da polícia, e não sobre toda a corporação. Existem policiais bons e ruins", contemporiza A.G.R.
Outras composições de teor semelhante serão encontradas no álbum O raciocínio é forte, cuja gestação já dura um ano e consumiu R$ 5 mil do bolso dos integrantes. A previsão de lançamento é no feriado de 7 de setembro. O curioso é que todas as faixas são gravadas num estúdio gospel no bairro da Formosinha, um dos mais antigos, o Toque & Arte. "A gente cria em conjunto. Um rabisca uma rima. O outro lê. A gente discute, canta e compõe juntos", observa A.G.R.
O projeto agrega outros rappers da cidade, como Carlos Travesso, irmão de M.A.L.A., e KLM. A ideia é fazer um produto acessível para o público que já acompanha os rappers em shows como no Formosa Tênis Clube, construído para distrair a fina flor da elite formosense. "O disco custará entre R$ 7 e R$ 8", adianta M.A.L.A., enquanto apresenta o rascunho da arte do álbum. O lançamento deverá ser estendido para outras cidades do Entorno do DF, onde o grupo já tem o costume de se apresentar para plateias de até 3 mil pessoas, junto com o companheiro Mano Manya, pioneiro do rap na região.
Além de rappers locais, as influências de M.A.L.A., A.G.R. e Luana passam por ídolos universais, como o revolucionário argentino Che Guevara, cuja foto enfeita a parede da casa sem reboco, construída por M.A.L.A. no novo bairro Jardim das Américas. "Gostamos também de Malcolm X e Zumbi dos Palmares porque lutaram pelos direitos dos negros", diz Carlos Travesso, em consonância com as ideologias do grupo liderado pelo irmão, Nego M.A.L.A.
O rapper número 1
Pioneiro do rap em Formosa, Mano Manya ainda não gravou um disco. O eletricista, batizado como Vanderli Teixeira Barbosa, vibra com o lançamento dos amigos. "A gente sempre trabalha em conjunto. Gosto de saber como vão as coisas para tentar aperfeiçoar sempre." Com apenas 33 anos, ele é sujeito de responsa, respeitado por A.G.R., Nego M.A.L.A. e Carlos Travesso. "Meu pai gosta de modão de viola. Eu também. Mas desde pequeno preferia aquelas letras que falavam da realidade e faziam algum tipo de denúncia social", lembra.
Antes de unir ritmo e poesia em composições potentes, Mano Manya foi dançarino de break e DJ de festas de axé, executando os hits baianos em tocadores de fita cassete, durante a década de 1990. "Adotei o nome Manya nesta época por causa do programa Mix Mania de Brasília, apresentado pelo DJ Celsão. Para sintonizá-lo, precisava instalar a antena a uns 20m de distância. Eu já fiz cada coisa", relembra.
Ativista cultural, ele se multiplica em muitos. Tem emprego na prefeitura, organiza série de eventos nos bairros da cidade. Há seis anos, comanda o programa Domingo hip hop, transmitido por uma das rádios locais. Com uma década de rap nas costas, já compôs canção que é a genealogia do movimento na cidade, a épica A história do hip hop de Formosa, ainda como integrante do extinto grupo Razão Consciente. "Rap é a realidade, não a ilusão", filosofa.
A realidade, aliás, tem sido duríssima para o pai de três filhos que se arrisca há anos no mundo do hip hop. As tretas (ou conflitos) entre gangues rivais, típicas das grandes cidades, levaram diversos amigos. "Muitos dos manos que eu via nos shows desapareceram. No cemitério Cruz das Almas há uma fileira com os companheiros. A letra de Seguir adiante é uma homenagem a eles", lamenta-se.