A casa de Vladimir Carvalho, no início da W3 Sul, tem a arquitetura de um filme. Cada cômodo sugere uma cena. As janelas são como rolos de película. Os objetos contam uma história que começa no jardim, invade a sala de estar, engole a área de serviço e enche de vida um pequeno auditório no segundo andar. Revestida de lembranças, a construção na quadra 703 abriga nada menos que a trajetória de um dos maiores documentaristas do Brasil. Há 15 anos, o autor de Conterrâneos velhos de guerra e O país de São Saruê resolveu transformar o próprio lar, onde vive desde 1983, num pequeno museu. Esta semana, o diretor levará o projeto pessoal da Fundação Cinememória às últimas consequências: doará todo o acervo com a casa e tudo para a comunidade, por meio da Universidade de Brasília (UnB).
É uma ideia fresquinha, ainda não sei a consequência disso tudo, admite o cineasta, que completou 74 anos em janeiro. Mas ele está decidido a apresentar a oferta nesta quinta-feira, em reunião na UnB com participação do reitor José Geraldo de Sousa Júnior. Quero fazer a doação do local físico, que é de minha propriedade, com tudo o que existe aqui dentro. Os 3 mil livros, meus 21 filmes, todas as fotografias e os equipamentos. É um acervo que construí por mais de 50 anos de vida, e estou dando de mão beijada à cidade, diz.
A decisão não veio à toa. Foi preparada como um grande presente para as comemorações dos 50 anos de Brasília. Mas também provoca o barulho de um ato político: com a verve habitual, o professor aposentado da UnB grita pela preservação da memória brasiliense.
A batalha começou há tempos. A Cinememória nasceu em 1994 como uma provocação: na época, Vladimir brigava pela construção de uma cinemateca de Brasília. Ano passado, o diretor chegou a desenhar uma planta improvisada da obra, a pedido do Arquivo Nacional. Mas ainda não deu em nada. O sonho ainda está grudado numa folha de papel. Não existe compromisso de governo, afirma. A cidade tem uma população de mais de 2,5 milhões e uma das maiores universidades do país. Mas cadê a nossa cinemateca?, critica. Cansado de esperar, Vladimir quer garantir a conservação do próprio museu. Tenho que me render às seguintes evidências: não sou museólogo, sou um documentarista. Sou o cara da prática. A Fundação Cinememória é transitória.
Convidado para participar de um fórum na UnB sobre os 50 anos da cidade, formado pela Academia e pela comunidade, o cineasta paraibano foi instigado a apresentar projetos para 2010. Vai fazer três sugestões: que a universidade ajude na criação da cinemateca e na organização de uma mostra de cerca de 400 filmes sobre Brasília (a partir de pesquisa de Berê Bahia). E que, finalmente cuide da Cinememória. O cinema não tem aqui a sua casa. Estou oferecendo inicialmente a minha casa ao cinema local, afirma. Entre as preciosidades guardadas, há cartazes, câmeras raras, fitas de vídeo, revistas, negativos, cartas e imagens de mestres como Mário Peixoto, Glauber Rocha e Rogério Sganzerla. Antes que o martelo seja batido, porém, o diretor faz algumas exigências: não quer que o espaço seja vendido ou transfigurado. Ele também pretende continuar morando na casa: Vou ficar aqui até o fim da vida.[FOTO1]