Onze e meia da manhã, Sergio Britto, um dos construtores do moderno teatro brasileiro, ajeita a poltrona bem perto à luminária acesa. Prepara-se para entrar na rotina de apresentação da temporada de
A última gravação de Krapp e
Ato sem palavras 1, duas peças curtas de Samuel Beckett, em cartaz neste domingo, às 19h, na Caixa Cultural.
- Quero que você se sente bem aqui, preciso te ver na luz", dirige.
Antes de começar esta entrevista, o interfone toca duas vezes. Ele está longe do estofado. Corre para atender, faz questão. Sai em passo acelerado. A primeira é o secretário particular. A outra...
- Deve ser Odila. Ah, Odila, Odil... (a produtora local)
Errou. É Iano, o fotógrafo do
Correio. A disposição parece aumentar com essa adrenalina.
- Hoje, já fiz 15 minutos de exercícios e passei o texto inteiro. À tarde, vou ao teatro ensaiar. Em dias de apresentação, chego com duas horas de antecedência. É um vício que tenho. Gosto de me desligar da vida e sentir que estou no teatro, revela.
Aos 86 anos, Sergio Britto está assim. Cheio de vigor e vida. Um vulcão, como ele define. Nos últimos tempos, emendou projetos com linguagens e dramaturgias diferentes, numa produtividade impressionante. De 2002 para cá, fez o exímio
Longa jornada dia e noite adentro (do norte-americano Eugene O%u2019Neill),
As pequenas raposas (da norte-americana Lilian Helman),
Sergio 80 (monólogo do carioca Domingos de Oliveira),
Outono e inverno (do sueco Lars Norén) e
Jung e eu (também de Domingos Oliveira).
- É assim que eu me sinto vivo. Não penso demais para escolher esse repertório. Busco o que tenho vontade de dizer, revela.
As duas peças curtas de Beckett vieram de uma provocação da diretora Isabel Cavalcanti, especialista no dramaturgo irlandês. Sergio Britto ficou maravilhado com a atuação dela em
Fim de partida. Ele a convidou para o programa
A arte de Sergio Britto. na TV Brasil. Na roda de bate-papo, nasceu a faísca para encarar esse velho escritor, grande personagem a serviço da descrença do autor na trajetória efêmera do ser humano.
- Beckett diz que o homem vive de teimoso que é, pontua.
Sergio Britto assistiu à peça
A última gravação de Krapp, que foi escrita inspirada na estética da voz do ator Patrick Magee, numa gravação dirigida pelo próprio Beckett. Quando o autor irlandês escreveu, tinha se encantado com a sonoridade anasalada do intérprete de Laranja mecânica.
- Só que Beckett refez, tirou essa rubrica. Agora, quando fui fazer Krapp, eu que sou um ator de composição de personagem, recebi um comando importante de Isabel. Ela disse: "Não quero o ator Sergio Britto em cena. Quero o homem Sergio Britto".
Para viver esse escritor estilhaçado por perdas (a mãe e uma mulher expulsa da vida afetiva), o ator mergulhou em lembranças doloridas. Traz isso dentro de si toda vez que pisa no palco. Do momento inicial em que come duas bananas e meia até a última ação física, está impossível em cena.
Sergio Britto vivencia Beckett há quase 40 anos. Em 1970, sob a direção de Amir Haddad, fez
Fim de jogo. Como lembra, era pesado e ninguém entendia absolutamente nada do que estava fazendo. Na década de 1990, ao lado de Rubens Corrêa e Ítalo Rossi, fez as primeiras experiências de Gerald Thomas (que conheceu o autor irlandês) no Brasil. A encenação já trazia humor, mas era a visão de um diretor sobre o dramaturgo, com pouco espaço para liberdade de criação do ator. Agora, ele está tão solto e estimulado no palco, que Beckett ficou ao alcance de todos e Sergio cheio de vigor.
- Em
Ato sem palavras 1, entro desequilibrado. Acredito que Deus me empurra.
A ÚLTIMA GRAVAÇÃO DE KRAPP E ATO SEM PALAVRAS 1
Com Sergio Britto. Direção de Isabel Cavalcanti sobre duas peças curtas de Samuel Beckett. Hoje, às 19h, na Caixa Cultural (SBS Qd. 4, Lt. 3/4, 3206-6456). Ingressos a R$ 20 e R$ 10 (meia). Não recomendado para menores de 16 anos.