A maior pesquisa conduzida no Brasil sobre o uso da hidroxicloroquina para tratar a covid-19 mostra que o medicamento é ineficaz em casos leves e moderados da doença. Além disso, não reduz a taxa de óbito e está ligado a maior risco de arritmia e lesão hepática. O estudo responde a uma dúvida que rondava o meio científico — até então, a maioria dos dados considerava pacientes em estados graves. Para a equipe brasileira, os resultados também podem ser considerados “um ponto final” na linha de investigação focada em combater a pandemia da covid-19 com o medicamento criado para tratar a artrite reumatoide.
“Os ingleses anunciaram, recentemente, que a droga não funcionava para pacientes mais graves. Faltava saber o que acontecia nos casos leves e moderados. Conseguimos dar essa resposta ao mundo com uma pesquisa padrão ouro. É um passo importante para pormos um ponto final nessa história e prosseguirmos com outras frentes de estudo”, diz Renato Lopes, cardiologista, pesquisador e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Duke University (EUA) e integrante do comitê executivo da Coalizão Covid-19 Brasil, grupo de pesquisadores que conduziram o estudo, divulgado, na edição de ontem, no The New England Journal of Medicine.
Participaram da pesquisa, chamada Coalizão I, 667 pacientes, com em média 50 anos, atendidos em 55 hospitais brasileiros. Os infectados pelo Sars-CoV-2 apresentavam, havia no máximo sete dias, sintomas leves e moderados da covid-19: quando chegaram à unidade hospitalar, 57% não precisavam de oxigênio e o restante recebeu suporte suplementar leve. Além disso, todos eram recém-admitidos: o atendimento médico tinha começado havia, no máximo, 48 horas.
Por sorteio, os voluntários foram divididos em três grupos: 217 receberam a combinação de hidroxicloroquina, azitromicina e suporte clínico padrão; 221, hidroxicloroquina mais suporte clínico padrão; e 227, apenas suporte clínico padrão (grupo controle). Quinze dias depois do tratamento, que durou uma semana, os cientistas concluíram que as duas primeiras abordagens não promoveram melhoria na evolução clínica dos pacientes.
O número de voluntários que voltaram para a casa nos três grupos, por exemplo, foi praticamente o mesmo: 69% dos pacientes que receberam hidroxicloroquina, azitromicina e suporte clínico padrão; 64% dos submetidos à combinação hidroxicloroquina e suporte clínico padrão e 68% do grupo de controle. As taxas de óbito também ficaram semelhantes: em torno de 3%.
Alterações
Quanto aos efeitos adversos, dois fenômenos chamaram a atenção dos pesquisadores. Pacientes tratados com a hidroxicloroquina, com ou sem azitromicina, apresentaram alterações mais frequentes nos eletrocardiogramas, que sinalizam maior risco de ocorrência de arritmias. O mesmo ocorreu em exames de sangue que indicam o risco de lesão hepática.
Boa parte dos voluntários apresentava comorbidades que podem agravar a covid-19: 40% eram hipertensos, 21%, diabéticos e 17%, obesos. Ainda assim, sinaliza Renato Lopes, eles não sofriam quadros graves da infecção. Para o cardiologista, os resultados também enfraquecem a proposta de uso do medicamento já no início da doença, como forma de evitar o agravamento. “Com esses dados, adicionamos uma peça importante ao quebra-cabeça de combate à covid-19. Completamos um espectro de abordagens e damos uma resposta robusta à ciência, uma resposta que pode guiar condutas médicas”, enfatiza.
Um outro estudo do grupo, chamado Coalizão V, avalia se a hidroxicloroquina previne o agravamento da covid-19 em pacientes que não precisam de internação hospitalar. Nesse caso, 454 pessoas são acompanhadas. Apesar de as análises não terem sido concluídas, espera-se uma resposta semelhante. “Quando olhamos a totalidade das evidências, considerando casos gravíssimos, graves, moderados e leves, o bom senso diz que a chance de a hidroxicloroquina também não funcionar nos hospitalizados deve ser alta. Mas, bom senso não guia conduta médica, trabalhamos com evidências científicas”, afirma o também diretor do Brazilian Clinical Research Institute (BCRI).
O Coalizão Covid-19 Brasil é resultado de uma aliança formada pelo Hospital Israelita Albert Einstein, pelo HCor, pelo Hospital Sírio-Libanês, pelo Hospital Moinhos de Vento, pelo Hospital Alemão Oswaldo Cruz, pela Beneficência Portuguesa de São Paulo, pela Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet) e pelo BCRI.
Ao todo, nove frentes de pesquisa são conduzidas, com resultados a serem divulgados. Além da hidroxicloroquina, a equipe testa a efetividade da dexametasona (um corticosteroide), da rivaroxabana (um anticoagulante), do tocilizumab (usado no tratamento da artrite reumatoide) e de drogas antivirais, além do impacto a longo prazo da covid-19, após a alta hospitalar.
» Para saber mais
Desistência em cadeia
Os maiores questionamentos quanto ao uso da hidroxicloroquina para tratar a covid-19 começaram em maio, após a divulgação de um estudo, no periódico The Lancet, mostrando a falta de eficácia da droga, além do aumento do risco cardíaco e de mortalidade.
Logo em seguida, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu suspender os testes com o medicamento. Porém, os resultados da pesquisa, apresentada como a investigação com a maior amostra sobre o tema, passaram a ser alvo de uma avalanche de críticas da comunidade científica, principalmente devido à metodologia aplicada.
Em 3 de junho, a OMS decidiu retomar os estudos com a hidroxicloroquina, justificando que não havia diferença das taxas do tratamento com as de outras abordagens experimentais após revisão feita por seus especialistas. Quinze dias depois, os testes com a droga foram interrompidos, acompanhando medidas semelhantes adotadas por projetos de pesquisa e órgãos de saúde pelo mundo.
Pesquisadores do ensaio clínico Recovery, no Reino Unido, por exemplo, anunciaram a cessação “imediata” da inclusão de novos pacientes nos testes com covid-19 em 5 de junho. O estudo, um dos maiores ensaios clínicos em andamento que buscam tratamentos para a covid-19 em diferentes frentes, tinha uma frente para estudo da hidroxicloroquina e da cloroquina com 1.542 voluntários. As análises mostraram que as drogas não tinham “efeitos benéficos” em pacientes hospitalizados em decorrência da infecção pelo novo coronavírus.