Para alguns pacientes recuperados da covid-19, a notícia da cura pode não ser o fim. Estudos têm associado a infecção por Sars-CoV-2 ao desenvolvimento de problemas como doenças coronarianas, neurológicas e endocrinológicas, mesmo quando não há mais carga viral circulante. Assim como a suscetibilidade ao micro-organismo e a severidade dos sintomas, não se sabe por que parte da população afetada pelo coronavírus sofrerá de enfermidades durante e depois do tratamento.
Como se trata de uma doença nova, com mecanismos que ainda estão sendo estudados, a ciência está apenas começando a coletar dados sobre complicações de longo prazo, pós-covid. Os Serviços Nacionais de Saúde da Inglaterra estimam que, entre os pacientes que foram hospitalizados devido ao Sars-CoV-2, 45% necessitarão de cuidados mesmo em casa, 4% precisarão de algum tipo de reabilitação (como fisioterapia pulmonar) e 1% terá de receber tratamento médico para o resto da vida.
As complicações de longo prazo não são uma característica apenas do Sars-CoV-2. Em 2003, foi registrado, na Ásia, o primeiro caso de Sars, doença respiratória provocada pelo coronavírus Sars-CoV, o “primo” mais próximo do micro-organismo causador da covid-19. Naquele ano, a enfermidade espalhou-se para a Europa, a América do Sul e a América do Norte. Nos seis meses de surto, foram 8.422 casos — três deles no Brasil — e uma taxa de mortalidade de 11%. Passada a pandemia, muitos dos infectados apresentaram sequelas.
Um artigo retrospectivo de pesquisadores chineses publicado na revista Respirology em novembro de 2003 apontou que, meses após a alta, até 21% dos ex-pacientes de Sars sofriam de doenças pulmonares e respiratórias. Outra complicação foi uma síndrome de fadiga pós-viral, causada, em parte, pela insuficiência adrenal — condição em que as glândulas suprarrenais não produzem cortisol suficiente, como resultado de danos ao sistema hipofisário. Durante a epidemia de Sars, os pacientes que desenvolveram insuficiência adrenal geralmente se recuperaram em um ano.
Na pandemia da covid-19, uma das sequelas mais bem-estabelecidas, por ora, são as neurológicas. Até pouco tempo atrás, os estudos sobre os danos no sistema nervoso central referiam-se a um número modesto de pacientes. Porém, em 26 de junho, a revista Lancet publicou a primeira pesquisa com 125 pessoas, realizada na Inglaterra. Dessas, 77 sofreram derrame, sendo que 57 tiveram acidente vascular cerebral. Do total, nove apresentaram encefalopatia (disfunção cerebral que causa diversas condições, como alterações comportamentais e dificuldades de concentração) e sete tiveram encefalite.
Alzheimer
O estudo ressalta que os pacientes precisam ser acompanhados por mais tempo para observar se as sequelas serão crônicas. Mas um dos autores principais, Benedict Michael, da Universidade de Liverpool, destacou, em entrevista à Lancet, que essas informações precisam ser estudadas a fundo pela neurociência e levadas em consideração nas futuras políticas públicas de combate à covid-19.
“Precisamos entender melhor como as células cerebrais são afetadas pela covid-19, quais são essas células e como podemos retardar os danos”, diz Valina Dawson, diretor do programa de neurodegeneração e células-tronco do Instituto de Engenharia Celular em Jonhs Hopkins. O neurocientista começou um projeto de estudo para criar, com células-tronco, “minicérebros” em laboratório, onde será possível investigar como o Sars-CoV-2 afeta o órgão. Também faz parte da pesquisa o acompanhamento de pacientes para verificar os efeitos de longo prazo da infecção no sistema nervoso central.
O cientista interessa-se particularmente pelas proteínas tau e alfa-sinucleína, que, quando danificadas, relacionam-se com as doenças neurodegenerativas de Alzheimer e Parkinson, além da esclerose lateral amiotrófica. Uma preocupação de Dawson é que as substâncias estressoras liberadas pelo organismo durante a infecção de covid-19 pode fazer como que essas proteínas se acumulem, gerando o que ele chama de “um tsunami do aumento de doenças neurodegenerativas entre os sobreviventes”.
“À medida que ganhamos mais experiência sobre esse novo patógeno, nós percebemos que seu impacto negativo vai além do sistema respiratório”, diz William Brady, pesquisador da Universidade da Virgínia e um dos autores de um estudo que associa a covid-19 a complicações cardiovasculares. “Estamos vendo mais e mais pacientes com doenças relacionadas à covid-19, o que tem nos mostrado o tamanho do seu impacto no organismo em geral e, em particular, no sistema cardiovascular.”
Segundo Brady, a covid-19 causa inflamações severas no organismo — uma das explicações é que, para combater a infecção, o corpo libera substâncias chamadas citocinas, que, em grandes quantidades, acabam desencadeando o processo inflamatório. “Isso aumenta o risco de formação de placas gordurosas nas artérias sanguíneas, levando a ataques cardíacos e derrames”, diz. Essas são condições que podem deixar sequelas para o resto da vida, lembra Brady.
Na semana passada, um artigo publicado no Journal of Endocrine Society, dos Estados Unidos, alertou que a covid-19 afeta severamente o sistema endócrino. “O vírus que causa a covid-19 se liga ao receptor ACE2, uma proteína que é expressa em muitos tecidos. Isso permite que ele entre nas células endócrinas e cause o caos associado à doença”, destaca Noel Pratheepen Soasundaram, do Hospital Nacional do Sri Lanka, principal autor do estudo.
O cientista diz que a covid-19 pode levar a novos casos de diabetes e ao agravamento dessa condição preexistente. De acordo com Soasundaram, isso acontece porque o Sars-CoV-2 interrompe, nas células, a produção de insulina. Dessa forma, os níveis de glicose no sangue podem se elevar.
Duas perguntas para
Lívia Vanessa Ribeiro, infectologista e membro da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal
Muitos estudos estão sugerindo que a infecção por Sars-CoV-2 pode causar efeitos a longo prazo, especialmente neurológicos e no sistema endócrino. Como um vírus que, em princípio, afeta o trato respiratório pode prejudicar outros sistemas do organismo?
Apesar de ser uma doença que compromete predominantemente o sistema respiratório, já existem vários relatos de envolvimento do sistema nervoso central e periférico na covid-19. Entre as principais complicações neurológicas destacam-se a síndrome de Guillan-Barré, encefalopatias, acidente vascular cerebral isquêmico, meningoencefalite e Adem (acute disseminated encephalomyelitis), uma doença desmielinizante do sistema nervoso central Alguns vírus têm sido associados ao estímulo autoimune, o que pode favorecer alterações no metabolismo, levando a diabetes insulino-dependente, como já relatado, pelo vírus Sars-CoV, responsável pela epidemia no Oriente em 2002. No caso do Sars-CoV-2, um estudo recente demonstrou como esse vírus pode infectar células produtoras de glucagon e produtoras de insulina, em pâncreas produzido em laboratório, induzindo, também, à morte celular. O vírus induz, também, produção de citocinas, danificando ainda mais as células pancreáticas e o fígado. Portanto, as complicações não estão restritas apenas a um sistema, podem ser secundárias à lesão direta causada pelo vírus.
O fato de alguns sintomas iniciais serem perda de paladar e olfato sugere a associação negativa do Sars-CoV-2 com possíveis alterações no sistema nervoso central?
O vírus inicialmente entra no nosso organismo pela via respiratória e se liga às células hospedeiras através de receptores-alvo: ACE-2 (enzima conversora da angiotensina-2) e TMPRSS2 (protease transmembrana serina 2), presente nas células epiteliais das vias aéreas, células epiteliais alveolares, células endoteliais vasculares e macrófagos no pulmão. As células do bulbo olfatório são ricas nesses receptores. Portanto, o mecanismo envolvido na perda de olfato (anosmia) danifica células de suporte do epitélio olfatório e afeta neurônios sensoriais olfativos. A perda de paladar, um pouco menos frequente, se dá quando as células das papilas gustativas são infectadas, provavelmente pela ligação nos mesmos receptores já citados. Porém, as células receptoras gustativas podem se regenerar de maneira mais rápida (em torno de 14 dias). Por isso, muitas vezes, o paladar acaba sendo recuperado antes do olfato (alguns casos demoram de seis a oito semanas).