Os cuidados para controlar a transmissão do novo coronavírus alteraram a rotina do planeta e deixaram as pessoas desconfiadas. Surgiu o risco de elas serem “capturadas” por um micro-organismo letal e que pode estar presente em qualquer um, inclusive naqueles que não apresentam os sintomas da covid-19, os chamados assintomáticos. Medidas restritivas duras, como o bloqueio de cidades e o uso obrigatório de máscara, foram tomadas para evitar esse tipo de infecção, entre outros objetivos. Mas uma declaração feita, na segunda-feira, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) trouxe mais incertezas ao cenário. A agência afirmou que a transmissão por assintomáticos é rara e não deve ser prioridade dos governos. Ontem, após a polêmica gerada, a entidade das Nações Unidas disse que houve um “mal-entendido”.
“Estamos absolutamente convencidos de que a transmissão por casos assintomáticos está ocorrendo, a questão é saber quanto, saber qual é a contribuição relativa de cada grupo para o número total de casos”, disse Michael Ryan, diretor executivo do Programa de Emergências da OMS. A afirmação polêmica foi feita por Maria van Kerkhove, líder técnica do mesmo programa. Também ontem, a infectologista tentou elucidar o assunto. “Recebi muitas mensagens pedindo esclarecimentos sobre alguns argumentos que usei ontem (segunda) durante a coletiva de imprensa. Acho importante esclarecer alguns mal-entendidos sobre minha fala.”
Segundo Maria van Kerkhove, já se sabe que muitos infectados pelo Sars-CoV-2 não desenvolvem os sintomas da covid-19, e que a maior parte da transmissão se dá a partir de pessoas sintomáticas, ou seja, que apresentam sinais da doença. “Elas passam para os outros através de gotículas infectadas”, explicou a médica. “Mas há um subgrupo de pessoas que não desenvolvem sintomas. E, para entender verdadeiramente esse grupo, não temos uma resposta concreta ainda. Há estimativas de que o número gire entre 6% e 41% da população. Mas sabemos que as pessoas que não têm sintomas podem transmitir o vírus”, ressaltou.
Pedido por dados
Entre especialistas, há uma classificação de pessoas infectadas por vírus de uma forma geral. Elas podem ser pré-sintomáticas — quando vírus está incubado, ainda não apresentou os seus efeitos, mas eles vão ocorrer — ou assintomáticas, quando não desenvolveram complicações como febre, tosse e falta de ar. Segundo Ashish K Jha, diretor do Instituto de Saúde Global da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, cerca de 20% das pessoas infectadas pelo novo coronavírus se enquadram nesse segundo grupo. Mas muitas das 80% restantes “estão lançando o vírus antes de desenvolverem os sintomas”. “Elas são assintomáticas no momento em que estão eliminando vírus”, escreveu o médico em sua página no Twitter.
De acordo com Ashish K Jha, estudos de modelagem indicam que de 40% a 60% da propagação do coronavírus está acontecendo entre pessoas que não apresentavam sintomas da doença no momento da infecção. “Pode ser que não haja muita disseminação assintomática, mas muita disseminação pré-sintomática”, cogitou o médico. Para ele, o que se sabe hoje é que tanto assintomáticos quantos pré-sintomáticos “espalham um enorme problema para controlar a doença”. Por isso, o especialista defendeu que afirmação feita na OMS na segunda-feira deveria ter sido “acompanhada de dados”.
Ao tentar esclarecer a polêmica, Maria van Kerkhove disse que sua afirmação tinha como base dados de pequisas que ainda não foram publicadas, mas que a OMS havia recebido de seus Estados-membros, principalmente aqueles que mais têm realizado testes de diagnóstico. “O que fiz referência (…) foi a poucos estudos, dois ou três, que tentaram seguir casos assintomáticos. Eu não estava declarando qualquer mudança de abordagem da OMS. Nisso, usei a frase ‘muito rara’, mas isso não quer dizer que a transmissão vinda de pessoas assintomáticas seja ‘muito rara’ globalmente. Eu me referi ao subconjunto dos estudos” argumentou.
Eliana Bicudo, assessora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), ressalta que não há estudos divulgadoscapazes de embasar o “equívoco” cometido pela representante da OMS. “Não temos essa constatação. O assintomático, depois que é diagnóstico com o coronavírus, tem uma carga viral baixa, mas não sabemos se isso interfere na transmissão da doença. Isso a gente sabe com relação ao HIV, por exemplo, mas não sobre o Sars-CoV-2”, compara a infectologista.
Impacto imediato
Para a médica, a líder técnica da OMS foi “infeliz na colocação”, que já começa a ter desdobramentos. “Acabei de atender a um paciente, um senhor de 73 anos, que apresentava leve coriza e febre, e o exame deu positivo para coronavírus. A filha dele me disse que não iria isolá-lo porque ele está assintomático. Ou seja, as pessoas já começaram a fazer confusões, o impacto é imediato.”
Eliana Bicudo lembra ainda que há uma sobrecarga de informações na atual crise sanitária, o que deixa a população mais vulnerável a aceitar soluções rápidas, sem fazer muitos questionamentos. “Por isso, é importante seguir as recomendações consolidadas: lavar as mãos, usar máscara, respeitar o isolamento e fazer testes na população. Tudo isso a gente já sabe que evita a transmissão do coronavírus”, lista. “Quanto às novidades, é sempre bom pensar duas vezes, até quando elas são ditas por líderes e autoridades. Tudo é muito novo, precisamos de tempo para descobrir o quanto as medidas são realmente verdadeiras.”
Em defesa das medidas que têm sido adotadas pela OMS, Mike Ryan ressaltou que há um enfoque da agência em ações práticas que diminuam a quantidade de mortos e infectados em escala global, além da busca de um entendimento sobre como se dá a transmissão comunitária do novo coronavírus. “Queremos salvar vidas. Quando damos conselhos sobre estratégias amplas de como controlar a doença, estamos focando em identificar os casos, acompanhar a trajetória da infecção, testar esses casos e garantir que haja quarentena”, justificou o diretor executivo do Programa de Emergências da agência.
Sinais-chaves
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os primeiros dias de manifestação da covid-19 podem ser os mais perigosos para a disseminação do vírus. Isso porque estudos começam a mostrar que, nesse período, os pacientes estariam mais infecciosos. “Parece, com base em informações muito limitadas que temos nesse momento, que as pessoas têm mais vírus no corpo no momento, ou perto do momento, em que desenvolvem sintomas, cedo assim”, afirmou Maria van Kerkhove, líder técnica da agência das Nações Unidos. Segundo a epidemiologista, estudos preliminares da Alemanha e dos Estados Unidos sinalizam que pessoas com sintomas amenos podem ser infecciosas durante oito a nove dias. Em casos mais graves, o período pode ser maior.
Palavra de especialista
Polêmicas geram inseguranças
Avaliando essa manifestação da Organização Mundial da Saúde em relação à transmissão do coronavírus por pacientes assintomáticos, fica bem claro que a covid-19 continua sendo uma doença que, a cada dia, necessita de estudos mais aprofundados. A questão da incubação do vírus varia de 1 a 14 dias, sendo que, em média, os sintomas surgem em cinco dias. Pode acontecer de o vírus ser transmitido nesse período, mas por ser difícil de comprovar, há a necessidade de mais pesquisas. Essa é uma doença muito nova, com menos de um ano e características diferentes das epidemias causadas pelo coronavírus anteriormente, como no caso da Sars e da Mers. O entendimento sobre a doença vai mudando, a gente sabe que vai mudar. Começamos achando que era uma síndrome pulmonar e, hoje, sabemos que é uma doença sistêmica, com uma série de sintomas que antes não eram relacionados. Por isso, essas declarações polêmicas geram insegurança tanto para os profissionais, que se baseiam em protocolos e em medidas indicadas pela OMS como seguras para o tratamento e para a prevenção da doença, quanto para a população em geral, que se sente insegura sobre o que a OMS está fazendo para proteger as pessoas expostas. Há ainda a politização dessas declarações. Aqui no Brasil, isso tem dificultado bastante os profissionais, não permitindo que eles trabalhem da forma mais científica possível.” Hemerson Luz, médico com experiência em operações humanitárias e desastres no Brasil e no exterior.