Em uma corrida desesperada contra o tempo, cientistas ao redor do globo buscam a bala de prata para enfrentar uma doença que já matou mais de 304 mil pessoas e infectou 4,48 milhões em apenas cinco meses. Se não há fórmula mágica para acabar com a pandemia de covid-19, é consenso entre especialistas que somente uma vacina preventiva será capaz de conter um vírus que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), poderá, como o HIV, continuar circulando infinitamente.
Gigantes da indústria farmacêutica e laboratórios de universidades têm se esforçado para encontrar uma substância que estimule o organismo a produzir anticorpos contra o Sars-CoV-2. O resultado é que, se no início de abril havia cerca de 30 projetos de desenvolvimento de vacinas, hoje, de acordo com a OMS, são 102. Desses, sete estudos se encontram na fase clínica, quando os testes são feitos em seres humanos.
Apesar da rapidez da resposta da comunidade científica e da promessa do presidente dos EUA, Donald Trump, de que uma vacina estará pronta até o fim do ano (leia entrevista nesta página), dificilmente ela estará disponível antes de 2021.
Algumas das que estão em testes clínicos, inclusive, preveem resultados definitivos para além disso. É o caso da substância que uniu três laboratórios, BioNTech, Fosun Pharma e Pfizer. A vacina começou a ser testada em humanos na Alemanha e nos Estados Unidos. Mas a expectativa é de que o estudo completo só seja divulgado em 2023 — o que é um prazo apertado, considerando que muitas substâncias do tipo demoram até uma década para chegar ao mercado.
Etapas
Para ser aprovada, uma vacina, ou um medicamento, precisa passar por fases rigorosas. Primeiro, os testes in vitro, quando são investigados os efeitos em células cultivadas no laboratório. Depois, os estudos com animais. Seguem as pesquisas com humanos, divididas em três etapas. A primeira verifica a segurança. A segunda inclui um número maior de participantes, na casa das centenas, e, além da toxicidade, começa a testar a eficácia. Depois, o estudo tem de ser realizado com milhares de pessoas e, seguindo o padrão ouro dos ensaios clínicos, ser randomizado, ou seja, dividindo-se aleatoriamente os voluntários em vários grupos, sendo que parte deles receberá placebo, para fins de comparação.
Dependendo das agências regulatórias, porém, é possível queimar etapas. Por isso, antes mesmo que um estudo seja concluído, uma vacina poderá ser lançada. A substância que vem sendo desenvolvida pela empresa de biotecnologia Moderna, em parceria com o Instituto Nacional de Doenças Alérgicas e Infecciosas dos Estados Unidos (Niaid), por exemplo, é uma candidata a chegar ao mercado antes da publicação do resultado final dos estudos.
A vacina, que usa a tecnologia de RNA mensageiro, começou a ser rascunhada dois dias depois de cientistas chineses anunciarem, em janeiro, a sequência genética do coronavírus. Quarenta e dois dias depois, a Moderna, baseada em Massachusetts, recebeu o aval para os testes de nível 1.
Há cinco dias, a companhia divulgou que a Food and Drug Administration (FDA) está agilizando a regulamentação por meio do fast track, um processo que permite facilitar o desenvolvimento de uma droga “para tratar condições sérias e que preencham uma necessidade médica não atendida”. Com US$ 500 milhões de financiamento federal, a Moderna pretende iniciar a fase 2 do estudo no início do verão norte-americano, na terceira semana de junho.
Proteína spike
Independentemente da tecnologia usada, a maioria das vacinas em desenvolvimento visa a proteína spike, uma estrutura em formato de espinho, que fica no envelope que protege o Sars-CoV-2. Uma das principais descobertas da ciência foi de que é graças a ela que o vírus consegue se ligar à membrana da célula do hospedeiro. Também é a spike que facilita o processo pelo qual o micro-organismo, depois de entrar no citoplasma, utiliza o maquinário celular para se reproduzir.
Uma preocupação era a de que o organismo não reconhecesse esse alvo como um perigo em potencial, deflagrando a resposta imunológica. Porém, um estudo publicado na semana passada na revista Cell confirmou que as células T, um dos principais mecanismos de defesa, identificam a proteína como a principal vilã do Sars-CoV-2.
Os pesquisadores do Centro de Doenças Infecciosas e de Pesquisa de Vacinas La Jolla, na Califórnia, estudaram detalhadamente a resposta antiviral do organismo ao ter contato com o Sars-CoV-2. Para isso, usaram amostras de 20 adultos recuperados da covid-19. Os resultados mostraram que o sistema imunológico é capaz de reconhecer o vírus de várias maneiras, dissipando o temor de que os esforços para desenvolver a vacina fossem em vão. “Se tivéssemos visto apenas respostas imunes marginais, estaríamos preocupados”, diz Alessandro Sette, professor do centro. “Mas o que vemos é uma resposta muito robusta das células T contra a proteína spike, que é o alvo da maior parte das pesquisas atuais, assim como contra outras proteínas virais. Essa descoberta é realmente uma boa notícia para o desenvolvimento de vacinas”, conta.
Ainda assim, os desafios para o desenvolvimento de uma vacina eficaz não são poucos, diz Lawrence Corey, pesquisador do Departamento de Medicina da Universidade de Washington, em Seattle. No início da semana passada, Corey publicou um artigo na revista Science, ao lado de outros especialistas, incluindo Antony Fauci, diretor do Niaid, ressaltando que, apesar dos avanços, ninguém está pronto, agora, para colocar uma vacina no mercado.
“Um alto grau de segurança é o objetivo principal de qualquer vacina amplamente utilizada e há, teoricamente, o risco de que a vacinação possa tornar uma infecção subesequente por Sars-CoV-2 ainda mais severa”, alerta o especialista. De acordo com ele, isso já foi verificado em coronavírus que atacam felinos, e também em modelos animais nos quais foram testadas vacinas contra a Sars, epidemia que eclodiu entre 2002 e 2003. A pressa para o desenvolvimento da substância não pode ser maior do que os cuidados com a segurança da população, adverte.
Mutações
Outra preocupação é com as mutações. O genoma do coronavírus consiste em uma fita simples de RNA, com uma taxa de mutação relativamente alta. “Mutações na proteína spike podem colocar em risco intervenções imunológicas para o Sars-CoV-2”, avisa a infectologista Helena Brígido, professora da Universidade Federal do Pará. Até agora, não foram observadas variações muito importantes no novo coronavírus, mas um estudo divulgado há duas semanas detectou alterações justamente na proteína spike, embora os autores tenham ressaltado que ainda não se sabe se elas impactarão no desenvolvimento das vacinas.
Além dos desafios no desenvolvimento e no teste de segurança e eficácia, especialistas lembram que é preciso centrar esforços na produção das vacinas, para que sejam disponíveis globalmente. “A capacidade de fabricar centenas de milhões a bilhões de doses de vacina requer que elas sejam produzidas em todo o mundo”, diz o artigo assinado por Corey e Fauci na revista Science.“Embora novas tecnologias e fábricas possam ser desenvolvidas para sustentar a produção, existe uma necessidade imediata de financiar a biomanufatura necessária, desde a fabricação da vacina à do frasco e à distribuição das doses”, afirma, ressaltando que, para isso, é necessário um “esforço global”.
Três perguntas para
Jason Pogue, especialista em farmácia e doenças infecciosas da Universidade de Michigan
O presidente Donald Trump afirmou, na sexta-feira, que espera uma vacina para covid-19 ainda no fim deste ano. O senhor acha esse prazo possível?
É impossível dizer se é possível, porque há muitas incertezas. Em primeiro lugar, nenhuma vacina foi desenvolvida até hoje tão rapidamente. Por outro lado, nunca vimos um programa receber tanto recurso assim. (O governo norte-americano afirmou que investirá “bilhões de dólares” no desenvolvimento da vacina). Embora eu seja cético quando a esse prazo, tenho esperança de que conseguiremos alguma quantidade de vacinas nos EUA em algum momento de 2021. Então, as decisões serão sobre priorizar quem será vacinado. A colaboração global no desenvolvimento de vacinas será crucial.
Além do tempo, quais as outras incertezas?
Testes clínicos são essenciais para determinar a segurança e a eficácia e, embora o plano (do governo norte-americano) seja executá-los rapidamente, tudo depende se a vacina vai funcionar. Existem alguns desafios em particular para determinar a eficácia de uma vacina durante uma pandemia, particularmente devido a tantos desconhecimentos a respeito do patógeno causador. Por exemplo, para mostrar que a vacina funciona, você deve demonstrar que um número significativamente menor de pacientes que tomaram a vacina foi infectado pelo Sars-CoV-2, comparado ao grupo controle. Porém, se esses estudos não ocorrerem até o verão ou o outono (inverno e primavera no Brasil), as incertezas sobre a sazonalidade do vírus podem impactar o número de pacientes que serão infectados. Além disso, várias vacinas estão sob desenvolvimento e pode ser que os grandes produtores, que terão capacidade de produzir a maior quantidade de vacinas, tenham a substância menos eficaz.
Qual porcentagem da população deve ter imunidade para que uma infecção desapareça?
Isso se chama imunidade de rebanho e muitas variáveis contribuem para isso. (A imunidade de rebanho é quando mesmo quem não foi vacinado está protegido da doença devido à alta taxa de vacinação). Algumas dessas variáveis incluem a porcentagem da população que é imune — seja por vacina ou por infecção natural — e quão infeccioso é o patógeno — uma variável que pode ser modificada, com base no distanciamento social e em outras medidas preventivas. Na minha opinião, lidaremos com a covid-19 em algum grau no futuro próximo. Existem muitas incógnitas, incluindo o grau/duração dos anticorpos de proteção e a imunidade celular. Dito isso, mesmo uma vacina abaixo do ideal pode beneficiar a população. A eficácia anual da vacina contra a gripe sazonal é geralmente de 40% a 50%, e muitos especialistas a consideram uma vacina ruim. No entanto, evita milhões de casos de gripe anualmente e também pode diminuir a gravidade da doença naqueles que são infectados.