Correio Braziliense
postado em 09/02/2020 06:00
Muitas pessoas que fumam há décadas costumam dizer que não vale a pena abandonar o hábito por ser tarde demais. Porém, um estudo britânico e norte-americano, publicado na revista Nature, provou que essa ideia é um equívoco. Embora as estatísticas mostrem que, com o tempo, o risco de desenvolvimento de doenças cai entre ex-fumantes, pela primeira vez, os cientistas visualizaram isso ocorrendo nas vias aéreas.
Eles descobriram um grupo de células-tronco que crescem e começam a reparar o pulmão, independentemente de quanto tempo se passou com um cigarro entre os lábios. Quem parou de fumar tem 40% mais essas estruturas, em comparação aos que insistem no hábito. “O incrível sobre nosso estudo é que ele mostra que nunca é tarde. Alguns dos participantes fumaram mais de 15 mil pacotes de cigarros ao longo da vida, mas, dentro de poucos anos depois de pararem, as células revestindo suas vias aéreas não mostraram evidências de danos do tabaco”, explica Peter Campbell, pesquisador do Wellcome Sanger Trust, na Inglaterra, e um dos autores da pesquisa. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a fumaça do cigarro está diretamente associada a 7 milhões de óbitos anualmente.
O câncer se desenvolve quando uma única célula adquire alterações genéticas que estimulam o crescimento desordenado dessa estrutura, fazendo com que se replique rápida e descontroladamente. Ao longo da vida, todas as células adquirem cerca de 20 a 50 variações por ano. A grande maioria dessas mutações é totalmente inofensiva, mas, eventualmente, uma delas vai se enveredar para o caminho do câncer. São as chamadas mutações de driver. Para que a célula se torne completamente cancerosa, estima-se que sejam necessárias de cinco a 10 dessas alterações.
Campbell conta que o resultado do estudo ocorreu de forma inesperada. “Nossa equipe se interessa pelos estágios iniciais do desenvolvimento do câncer de pulmão. Especificamente, tentamos entender o que acontece com as células normais quando expostas à fumaça do tabaco”, diz. Para estudar o fenômeno, o grupo desenvolveu métodos de isolamento das células normais por meio de pequenas biópsias das vias aéreas de um paciente.
Depois, elas foram cultivadas em uma incubadora para se obter DNA suficiente para o sequenciamento. “Em seguida, analisamos o genoma de 632 células de 16 participantes do estudo, incluindo quatro que nunca fumaram, seis ex-fumantes e três fumantes atuais (todos de meia-idade ou mais), além de três crianças”, enumera o pesquisador.
Entre os que nunca fumaram, descobriu-se que o número de mutações celulares aumentou constantemente com a idade. Assim, quando alguém tiver 60 anos, cada célula pulmonar normal conterá entre 1 mil e 1,5 mil mutações. “Elas são causadas pelo desgaste normal do organismo, o mesmo tipo de mutação que vemos em outros órgãos do corpo. Apenas cerca de 5% das células naqueles que nunca fumaram apresentaram mutações no driver”, conta Campbell.
Assinatura
Nos fumantes, o quadro foi muito diferente. Os pesquisadores constataram que cada célula do pulmão, em média, carregava 5 mil mutações extras, acima do que seria esperado de uma pessoa da mesma idade que jamais fumou. “Ainda mais impressionante foi que a variação de célula para célula também aumentou dramaticamente nos fumantes. Algumas sofreram entre 10 mil e 15 mil mutações — 10 vezes mais do que seria de esperar se a pessoa não fumasse. Essas mutações extras tinham a assinatura que esperávamos dos produtos químicos na fumaça do tabaco, confirmando que eles podem ser atribuídos diretamente aos cigarros”, explica Sam James, professor de Medicina Reparatória da Universidade da Califórnia em Los Angeles e um dos autores do estudo.
Além do aumento no número total de mutações, os cientistas também viram um aumento substancial no número de mutações de drivers. Mais de 25% das células pulmonares em todos os fumantes estudados apresentavam, pelo menos, uma mutação que impulsiona o câncer. Alguns tinham duas ou três. “Dado que cinco a 10 desses tipos de mutações podem causar câncer, é claro que muitas células pulmonares normais nesses fumantes de meia-idade ou mais velhos provavelmente se tornarão cancerígenas”, afirma James.
Mas o fato que mais chamou a atenção dos cientistas foi observado nos ex-fumantes. “Descobrimos que eles tinham dois grupos de células. Um sofreu milhares de mutações extras, iguais às vistas nos que continuam fumando, mas o outro grupo era essencialmente normal, contendo células com o mesmo número de mutações que esperávamos ver no pulmão de alguém que nunca havia fumado”, conta Campbell.
Esse grupo quase normal de células era quatro vezes maior em ex-fumantes do que nos tabagistas. Isso sugere que essas estruturas aumentam em tamanho para reabastecer o revestimento das vias aéreas depois que alguém para de fumar. Os cientistas visualizaram a expansão de células quase normais mesmo em ex-fumantes que consumiram um maço de cigarros todos os dias por mais de 40 anos.
Proteção
“A razão pela qual essa descoberta é tão emocionante é que esse grupo de células protege contra o câncer”, diz Campbell. “Agora, sabemos o motivo pelo qual nosso risco de câncer diminui de maneira tão significativa. É porque o corpo reabastece as vias aéreas com células essencialmente normais. O próximo passo será identificar como esse grupo consegue evitar danos causados pela exposição à fumaça do cigarro — e como podemos estimulá-lo a se recuperar ainda mais”, acrescentou.
Uma possível explicação, sugerida por trabalhos anteriores em modelos animais, é que há um grupo de células-tronco dentro das glândulas que produzem o muco secretado pelas vias aéreas. Naturalmente, esse local seria melhor protegido da fumaça do tabaco do que a superfície. “Por enquanto, nossa pesquisa reitera que parar de fumar, em qualquer idade, não apenas diminui o acúmulo de mais danos, mas também pode despertar células que não foram prejudicadas por hábitos anteriores”, conclui Campbell.
Essa capacidade de autorreparação, contudo, não significa que é possível fumar a vida toda e parar, esperando que o pulmão conserte todos os danos provocados pelo cigarro. Em uma pessoa que jamais fumou, o órgão é constituído por 100% de células não afetadas pelo tabagismo. Além disso, fumar também causa enfisema pulmonar, uma doença crônica e grave, que não consegue ser amenizada mesmo quando se cessa o hábito.
“É realmente motivador pensar que as pessoas que param de fumar podem colher os benefícios duplamente: elas previnem mais danos relacionados ao tabaco e dão ao pulmão a chance para que se recupere de alguns danos nas células saudáveis”, observa Rachel Orritt, gerente de informações de saúde da Cancer Research UK, que financiou o estudo. Ela observa que, agora, é preciso ampliar a pesquisa e envolver um número maior de participantes.
Três perguntas para Carolina Cardoso, oncologista do Grupo Oncoclínicas
A senhora acredita que as técnicas mais avançadas de sequenciamento podem, no futuro, indicar quantas mutações, e em que combinação, são necessárias para que o câncer de pulmão se desenvolva?
Acho que avanços no estudo molecular/genômico são fundamentais, tanto nas neoplasias do pulmão quanto em outras. Conhecer os mecanismos de formação do tumor e quais mutações (isoladas ou em combinação) seriam necessárias para seu desenvolvimento é parte fundamental para o conhecimento do tumor como um todo. Se não soubermos a origem, onde tudo começou, fica bem mais difícil encontrar tratamentos mais eficazes ou ferramentas de prevenção mais efetivas, além de termos mais dificuldade de encontrar aqueles que são susceptíveis ao desenvolvimento de malignidades. A oncologia caminha, cada vez mais, para uma abordagem individualizada. E tal conhecimento a nível genômico é ponto primordial.
O estudo pode ser um incentivo para tabagistas que pensam em parar?
Definitivamente, sim. Já é sabido que, após a cessação do tabaco, o benefício inicia-se precocemente e aumenta ao longo do tempo. Além do mais, o estudo sugere que aquelas pessoas que interromperam o tabagismo não só interrompem o processo de acúmulo de dano celular, como também puderam reativar células que não foram danificadas durante o processo de exposição a carcinógenos.
Uma das hipóteses dos autores é que um grupo de células-tronco consegue escapar dos efeitos do tabagismo. É possível imaginar que, a partir dessa informação, desenvolva-se algum tratamento tendo como base esse tipo de célula?
Há alguns tipos de células que não parecem ser afetadas pelos efeitos carcinogênicos do tabaco. Lembrando que somos um amontoado de células e a nossa heterogeneidade celular intrínseca existe e precisa ser levada em conta. O que o artigo aborda é o fato de sempre termos julgado que os danos celulares causados pelo tabagismo eram homogêneos, causando os mesmos efeitos em todos os grupos celulares de um mesmo órgão. Pode ser que, no futuro, usemos células-tronco ou geneticamente modificadas para o tratamento do câncer de pulmão, mas é apenas especulação, visto não termos dados suficientes para tal neste momento. Não só é preciso parar de fumar hoje, como é mandatório manter campanhas antitabagismo para que as pessoas não venham sequer a iniciar tal hábito. Lembrando que tabagistas afetam diretamente não só a si mesmos, mas também a quem os rodeia.
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