Correio Braziliense
postado em 05/02/2020 06:00
Uma análise genética feita em uma população ancestral sul-africana, os Xhosa, revelou detalhes importantes relacionados às origens da esquizofrenia. A pesquisa, publicada na revista especializada Science, identificou uma série de mutações no DNA, mais frequentes em indivíduos que apresentavam a doença. Segundo os autores do estudo, os resultados do trabalho podem ajudar na compreensão do distúrbio mental em todas as populações humanas. Além disso, também sugerem mecanismos com potencial para o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes.
Os pesquisadores explicam no estudo que a população Xhosa foi escolhida como alvo de análise por ser o continente africano o berço de todos os seres humanos. “Quase 99% da evolução humana ocorreu na África, depois que os primeiros seres humanos modernos se originaram e antes da migração para a Europa e Ásia”, frisam os autores no estudo, que foi liderado por Mary-Claire King, pesquisadora da Universidade de Washington, nos Estados Unidos.
Os especialistas também destacam que, poucas vezes, as populações africanas ancestrais foram o foco de pesquisas genéticas. “Devido à falta de estudos na África, muitos dados sobre a história genética humana estão faltando em nossa compreensão da adaptação humana e das doenças que hoje apresentamos”, observaram os cientistas.
Os Xhosa, grupo escolhido para a análise genética, possuem uma história evolutiva simultânea à do povo Bantu, que habitou a região da África Oriental à África Austral por séculos. Antes da chegada desse grupo, a região era ocupada exclusivamente pelo povo San, outros humanos modernos que viveram há, pelo menos, 100 mil anos.
De acordo com os autores do estudo, as evidências indicam que o povo Xhosa é resultado da mistura dos bantus com a população San. “Atualmente, os Xhosa vivem em toda a África do Sul e são o maior grupo populacional da região do Cabo Oriental”, explicam.
Os especialistas analisaram todas as sequências de DNA de mais de 1,8 mil indivíduos Xhosa, dos quais aproximadamente a metade foi diagnosticada com o transtorno psiquiátrico. “A esquizofrenia é, geneticamente, altamente heterogênea, envolvendo grave mutações ultrarraras em genes que são críticos para a plasticidade sináptica”, observam os cientistas nas conclusões do trabalho.
Por meio do levantamento genético do grupo africano, os pesquisadores descobriram que os indivíduos Xhosa com o distúrbio mental têm uma probabilidade significativamente maior de sofrer mutações genéticas raras e prejudiciais em comparação com aqueles que não apresentam o transtorno psiquiátrico grave.
A equipe de pesquisa também constatou que muitos dos genes interrompidos pelas raras mutações prejudiciais desses pacientes estão envolvidos na organização e função das sinapses cerebrais. Elas coordenam a comunicação entre os neurônios e são responsáveis pelo aprendizado, pela memória e pela função cerebral. Segundo os autores do estudo, os genes identificados no estudo ajudam na compreensão do distúrbio e podem contribuir para o desenvolvimento de terapias mais eficientes. “A esquizofrenia afeta aproximadamente 1% das pessoas em todas as partes do globo e é uma das principais causas de incapacidade no mundo. Os genes e caminhos identificados por essa pesquisa ajudam na compreensão da esquizofrenia para todas as populações humanas e sugerem mecanismos potenciais para a criação de tratamentos mais eficazes”, argumentam os cientistas.
Auxílio
Para o psiquiatra Thiago Blanco, o estudo internacional é interessante, principalmente, porque compreende um grupo populacional geralmente pouco considerado nas grandes pesquisas científicas, uma vez que, assinala, a maior parte do financiamento está nos países mais ricos e, portanto, esses são os principais alvos. “Nesse caso, a adoção de amostra sul-africana, geneticamente heterogênea, permite maior poder de generalização dos resultados para populações muito miscigenadas, como de tantos países latinos, incluindo a população brasileira, por exemplo”, frisou o especialista, professor da faculdade de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde, em Brasília.
Blanco também acredita que os dados observados na pesquisa podem contribuir para a área de tratamento futuramente. “Quando estamos diante de novidades, sempre nos perguntamos qual a aplicabilidade para a vida real, cotidiana, das pessoas. Nesse caso, o reforço do conhecimento de que essa é uma doença com grande determinância genética e de fisiopatologia ligada à capacidade dos neurônios em produzirem sinapses e conexões entre si, estimula o engajamento de pesquisadores para novas formas de tratá-la”, enfatiza o psiquiatra.
De acordo com o especialista, assim como outras doenças mentais, o transtorno merece total atenção dos cientistas, uma vez que ainda não é completamente compreendida. “A esquizofrenia é uma doença crônica, grave, progressiva, neurodegenerativa e incapacitante. Será sempre importante conhecer mais a doença para elaborar estratégias de prevenção, atenuação das manifestações, quando não evitáveis, e quiçá a cura. Portanto, sim, apesar de ser uma doença com enorme volume de publicações, ela deve continuar sendo estudada, pois, apesar de muito se conhecer sobre esquizofrenia, há ainda mais a saber”, opina Blanco.
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