A associação entre poluição atmosférica e asma, alergias e câncer de pulmão já está bem estabelecida pela ciência. Contudo, só recentemente começaram a aparecer evidências de que os malefícios das partículas tóxicas concentradas no ar não se limitam ao aparelho respiratório. Estudos epidemiológicos e de campo mostram que a exposição a poluentes — algo de que dificilmente a população urbana escapa — tem implicações negativas bem mais amplas.
Recentemente, pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Washington em St. Louis concluíram que mesmo a poluição atmosférica em níveis seguros (limite de 20µg/m³, segundo a Organização Mundial da Saúde) aumenta o risco de diabetes. A doença afeta, hoje, 250 milhões de pessoas globalmente, e os casos elevam ano a ano. As estimativas da OMS apontam que, até 2030, esse número pode dobrar. Os principais fatores de risco são dieta não saudável, obesidade e estilo de vida sedentário. Contudo, os autores do artigo, publicado na revista The Lancet, afirmam que as toxinas inaladas também desempenham um papel.
“Encontramos um risco aumentado, mesmo com baixos níveis de poluição do ar atualmente considerados seguros pela OMS. Isso é importante porque muitos grupos de lobby do setor argumentam que os níveis atuais são muito rigorosos e devem ser relaxados, quando, na verdade, precisam ser reforçados”, destaca Ziyad Al-Aly, MD, autor sênior do estudo e professor-assistente de medicina na Universidade de Washington. De acordo com ele, até hoje o fardo da poluição na incidência de diabetes não havia sido quantificado, embora a hipótese tenha sido levantada anteriormente.
Para avaliar a poluição atmosférica no ambiente externo, os pesquisadores analisaram partículas — pedaços microscópicos de poeira, sujeira, fumaça, fuligem e gotículas líquidas no ar. Estudos anteriores descobriram que essas substâncias podem entrar nos pulmões e invadir a corrente sanguínea. No caso do diabetes, acredita-se que a poluição reduza a produção de insulina e desencadeie a inflamação que impede o corpo de converter a glicose no sangue em energia necessária para manter a saúde.
Os cientistas estimaram que a poluição contribuiu para 3,2 milhões de novos casos de diabetes em todo o mundo em 2016, o que representa cerca de 14% de todos os registros inéditos da doença naquele ano. Eles também calcularam que 8,2 milhões de anos de vida saudável foram perdidos em 2016 devido exclusivamente ao diabetes associado à inalação de partículas tóxicas.
Também devido aos hormônios, a poluição atmosférica pode afetar os ciclos menstruais, tornando-os irregulares, segundo um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de Boston. De acordo com a ginecologista Shruthi Mahalingaiah, um dos autores da pesquisa, o sistema endócrino reprodutivo é fortemente influenciado por partículas tóxicas suspensas no ar: “Há efeitos negativos bem documentados nesse sentido, incluindo infertilidade, síndrome metabólica e síndrome dos ovários policísticos”, afirma.
Agora, a equipe de cientistas descobriu também que a exposição à poluição do ar entre adolescentes de 14 a 18 anos está associada a risco aumentado de irregularidade menstrual. Além disso, demora-se mais a atingir a regularidade no início da vida adulta. “O ciclo menstrual responde à regulação hormonal, e a poluição do ar por partículas altera a produção hormonal”, diz a pesquisadora, que publicou um artigo sobre o estudo na revista Human Reproduction.
Metabolismo celular
Evidências como essas incentivaram uma equipe da Universidade de Búfalo (UB) a pesquisar como a toxicidade no ar afeta o organismo no nível dos metabólitos — o produto do metabolismo de células ou moléculas. Eles fizeram isso em uma das cidades mais poluídas do mundo — Pequim —, avaliando o comportamento dessas substâncias antes, durante e depois das Olimpíadas de 2008. Os resultados foram publicados no ano passado pela revista Environmental Health Perspectives. Durante o evento, o governo chinês adotou controles temporários de poluição, abandonados, contudo, após o encerramento.“Pense em nosso corpo como uma sociedade. Esses metabólitos cumprem posições diferentes, como professor, agricultor, trabalhador, soldado. Precisamos que cada um funcione adequadamente para manter um sistema saudável”, compara Lina Mu, coautora do artigo e professora-associada de epidemiologia e saúde ambiental na Escola de Saúde Pública e Profissões da Saúde da UnB. “Nosso estudo descobriu que o corpo humano sofreu alterações sistêmicas no nível de metabólitos antes, durante e após as Olimpíadas de Pequim em 2008, quando a poluição do ar ambiente mudou drasticamente.” De acordo com a cientista, 69 dessas substâncias foram alteradas significativamente quando a qualidade do ar mudou. Muitas delas estão envolvidas em estresse oxidativo, inflamações, sistemas cardiovascular e nervoso.
Duzentos e um adultos participaram do estudo. Os pesquisadores os acompanharam durante os Jogos Olímpicos, quando a poluição do ar estava baixa, e, posteriormente, quando os níveis retornavam à sua máxima habitual na cidade de 21 milhões de pessoas. Os cientistas usaram uma plataforma que mede toda uma coleção de metabólitos detectáveis — 886, no caso da pesquisa — simultaneamente. “Juntos, esses metabólitos representam uma imagem relativamente abrangente das respostas do corpo humano à poluição atmosférica”, diz Lina Mu.
Dado:
14% dos casos de diabetes registrados no mundo em 2016 tiveram alguma relação com o contato com a poluição atmosférica, segundo pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Washington em St. Louis.
Anomalias cerebrais
Uma outra pesquisa do Instituto de Barcelona para a Saúde Global (ISGlobal), feita com crianças em idade escolar, encontrou associação entre exposição à poluição do ar na fase fetal e anomalias cerebrais que podem contribuir para o comprometimento da função cognitiva. O estudo, publicado na Biological Psychiatry, relata que os níveis de poluentes relacionados às alterações detectadas no cérebro estavam abaixo dos considerados seguros.O estudo usou uma coorte de base populacional na Holanda, que acompanhou gestantes e 783 crianças desde a fase fetal. A equipe, liderada por Mònica Guxens, avaliou os níveis de poluição do ar na casa das mulheres quando estavam grávidas. Imagens cerebrais realizadas quando os pequenos tinham entre 6 e 10 anos revelaram anomalias na espessura do córtex cerebral. Isso ocorreu mesmo nas casas de mulheres onde os níveis de partículas estavam bem abaixo do atual limite aceitável estabelecido pela União Europeia. Somente 0,5% das grávidas do estudo foram expostas a quantidades consideradas inseguras.
O estudo mostrou que as anomalias cerebrais contribuem, em parte, para a dificuldade no sistema inibitório — a capacidade de regular o autocontrole sobre as tentações e a impulsividade. Isso está relacionado a problemas de saúde mental, como comportamento viciante e transtorno de deficit de atenção/hiperatividade. O cérebro fetal é particularmente vulnerável a perturbações ambientais e ainda não desenvolveu mecanismos para proteger ou remover toxinas ambientais.
Os resultados do estudo sugerem que a exposição a níveis ainda inferiores aos considerados seguros pode causar danos cerebrais permanentes. “Os atrasos cognitivos observados em idades precoces podem ter consequências significativas a longo prazo, como aumento do risco de distúrbios mentais e baixo desempenho acadêmico”, destaca Mònica Guxens.
Com os ossos enfraquecidos
Também conhecida pelos altos níveis de poluentes, em particular devido à forte dependência de combustíveis fósseis como o carvão, a Índia foi cenário de um estudo do Instituto de Barcelona para a Saúde Global (ISGlobal), que encontrou uma associação entre a exposição à poluição do ar e a má saúde óssea. A osteoporose é uma doença na qual a densidade e a qualidade dos ossos são reduzidas. Globalmente, é responsável por uma carga substancial de doenças, e a prevalência deve aumentar devido ao envelhecimento da população.O artigo, publicado neste mês na revista Jama Network Open, analisou a associação entre poluição do ar e saúde óssea em mais de 3,7 mil pessoas de 28 aldeias nas proximidades da cidade de Hyberabad, sul do país. Os autores usaram um modelo desenvolvido localmente para estimar a exposição da população, dentro de suas casas, ao carbono preto e às partículas finas (aquelas suspensas, com menos de 2,5m?) circulantes no ambiente externo.
Os pesquisadores cruzaram essas informações com o estado dos ossos dos participantes. Para tanto, utilizaram um tipo especial de radiografia que mede a densidade óssea, denominada absorciometria por raios X de dupla, e calcularam a massa óssea na coluna lombar e no quadril esquerdo. Os resultados mostraram que a exposição à poluição do ar ambiente, particularmente a partículas finas, está associada a níveis mais baixos de massa óssea. Não foi encontrada essa correlação quando os voluntários, em vez de carvão, usavam combustível de biomassa para cozinhar.
“Esse estudo contribui para a literatura limitada e inconclusiva sobre poluição do ar e saúde óssea”, explicou, em nota, o brasileiro Otavio T. Ranzani, pesquisador do ISGlobal e primeiro autor do estudo. Sobre os possíveis mecanismos por trás dessa associação, ele afirma que “a inalação de partículas poluentes pode levar à perda de massa óssea por meio do estresse oxidativo e da inflamação causada pela poluição do ar”.