Deborah Fortuna
postado em 16/07/2019 18:16
Desde que foi divulgada, a morte do menino de 9 anos Rhuan Maycon, segundo a polícia esquartejado pela mãe e a madrasta em Samambaia (DF), tornou-se um dos casos mais citados pelos que criticam a chamada "ideologia de gênero". Isso porque, antes de ser assassinado, no início de junho, o menino teve o pênis amputado. Às autoridades, a mãe, Rosana Auri da Silva Cândido, 27 anos, e sua companheira Kacyla Pryscila Santiago, 28, teriam dito que fizeram o procedimento porque "ele queria ser uma menina".Na última quinta-feira (12/7), durante sua tradicional transmissão ao vivo, o presidente Jair Bolsonaro voltou a citar o caso. "O casal de lésbica cortou o piu-piu porque achava que ele nasceu para ser mulher. Sem comentários", disse, depois de afirmar que "abortar de vez a questão da ideologia de gênero" será uma das bandeiras do Brasil caso seja reeleito para o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.
[SAIBAMAIS]Ao sugerir que Rhuan é uma vítima da ideologia de gênero, o presidente se une a diversos políticos e personalidades que fizeram a mesma relação. Dias depois da morte de Rhuan, em 12 de junho, por exemplo, foi criado na Câmara dos Deputados o projeto da Lei Rhuan Maycon, que prevê elevação da pena de 30 para 50 anos de reclusão em casos de crimes contra crianças e adolescentes, especialmente "havendo motivação para impor a ideologia de gênero". O projeto foi protocolado pelos deputados Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Carla Zambelli (PSL-SP), para quem Rhuan foi assassinado "só porque era menino e nasceu menino".
A frase de Zambelli faz uma relação clara com o feminicídio, crime recentemente tipificado e que designa o assassinato de uma mulher pelo simples fato de esta ser mulher. Posições como a da deputada levantam uma questão: se a cultura machista pode ser apontada como motivadora de feminicídios, a ideologia de gênero pode ser apontada como causa, ou ao menos pano de fundo, para o assassinato de Rhuan? Foi essa pergunta que o Correio levou a especialistas que estudam a questão de gênero no país.
Violência, não ideologia
Para o professor Marco Aurélio Máximo Prado, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o crime contra Rhuan foi motivado por uma "patologia das mães, e não tem a ver com uma questão de gênero". E ainda reforça: ;O que a gente viu nessas mulheres foi violência. Impossível alguém dizer que tem uma causa aí que seria a ideologia de gênero;.
Todos os especialistas consultados têm uma visão semelhante à de Prado. E, na verdade, questionam a expressão ;ideologia de gênero;. A coordenadora do Grupo de Gênero e Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Adla Betsaida Teixeira, pós-doutora em desenvolvimento humano pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, resume: ;Ideologia de gênero é uma criação que não existe dentro da área científica. O conceito científico é de gênero;, diz.
Segundo Andrea Pacheco de Mesquita, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e coordenadora do grupo de pesquisa Frida Khalo, gênero não é uma ideologia, mas um conceito social das relações. ;A ideologia de gênero, conforme alguns colocam, foi reduzida a uma questão da LGBTfobia. Quando falamos de gênero, falamos de desigualdade da mulher no trabalho, no salário, na violência, e não uma imposição;, pontua. ;Eles reduziram esse conceito como se fosse restrito à sexualidade. Ou seja, mudança de sexo de homem ou mulher;, completa.
Um dos argumentos dos que consideram que um tipo de ideologia seria responsável pela morte de Rhuan é que o casal assassino é homoafetivo e realizaram mutilações no menino que indicariam uma tentativa de impor o gênero feminino ; por isso Rhuan teria morrido por ser menino. ;Isso é errado e a-histórico, extremamente desconstruído da realidade;, avalia Mesquita.
;A Lei Maria da Penha, a do feminicídio, vêm para reparar a naturalização da violência contra a mulher. Por isso, não dá para dizer que houve ;homencídio;. Ele não foi morto porque era homem, foram vários outros fatores para analisar que levaram a esse crime, mas não a ideologia de gênero;, completa.
Na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PSL), conhecida por pedir aos alunos que filmem os professores em sala de aula, frisou que o casal era "homoafetivo" e "feminista". ;Isso que aconteceu com o menino Rhuan tem absoluta e estrita ligação com essa teoria;, defendeu.
Os especialistas argumentam, no entanto, que a maioria dos crimes cometidos contra crianças são por casais heterossexuais. "O crime não está relacionado ao sexo ou gênero. Pode estar em qualquer um. Se essas pessoas fizeram isso, elas precisam ser punidas, independentemente de serem cristãs ou nãos, lésbicas ou não. As estatísticas mostram, inclusive, que a maioria de pais abusadores ou pais que fizeram algum crime contra os filhos são da família tradicional", aponta Teixeira.
Já Mesquita relembra casos chocantes, como o caso da menina Isabela Nardoni, jogada pela janela do apartamento pelo pai e a madrasta. ;Sempre que há crime trágico, há uma procura para justificar o caso. Nesse caso, a justificativa é que existiria uma ideologia de gênero. Mas isso não está atrelado. Quantos pais matam seus filhos? Hoje, o Brasil está no ranking de violência sexual de crianças. Cometidos, inclusive, por pais heterossexuais;, argumenta.
Uso político
Prado acredita que a expressão ideologia de gênero serve a fins políticos e ressalta que já foi utilizado por representantes de diferentes campos. "Embora esse termo esteja ligado fortemente a algumas forças de direita, ele também já foi expresso por pessoas ligadas à esquerda", diz.
Atualmente, observa, é utilizado especialmente para que as questões de gênero não sejam debatidas em espaços como a sala de aula. "Eles (os defensores da ideia de que há uma ideologia de gênero) desenvolvem um pânico moral, como se a discussão de gênero quisesse alterar a sexualidade das crianças. Há uma tentativa de criminalização de discussões sobre gênero", afirma. Além disso, Prado relembra a decisão do Brasil, no conselho das Nações Unidas, que retirou o termo ;gênero; de pauta. ;Foi a primeira vez que o país fez isso, e olha que já tivemos governos muito conservadores;, comenta.
Teixeira também defende a ampla discussão em espaços públicos para evitar novas tragédias. ;Quantas crianças estão passando pela mesma coisa que o Rhuan? Se ele estivesse na escola, e se os profissionais tivessem preparados para denunciar e educar essa criança? Há muitas instituições que poderiam tê-lo socorrido antes", conclui.