Ciência e Saúde

Smartphones potencializam necessidade de socialização humana

Pesquisadores buscam entender mecanismos ligados ao uso de smartphones para criar medidas de combate aos excessos. Uma das constatações é de que o aparelho potencializa uma necessidade que faz parte da história evolutiva humana: a de interação social

Vilhena Soares
postado em 12/05/2019 08:00
Pesquisadores buscam entender mecanismos ligados ao uso de smartphones para criar medidas de combate aos excessos. Uma das constatações é de que o aparelho potencializa uma necessidade que faz parte da história evolutiva humana: a de interação social

Você pode ir ao cinema ou ao mercado sozinho. Se pensar melhor, porém, está acompanhado. Graças aos smartphones, a interação social é frequente, mesmo a distância. Um grupo de pesquisadores canadenses mostra que o aparelho, considerado indispensável por muitas pessoas, ajuda a atender a uma necessidade existente desde os primórdios da história humana: a sociabilidade. E a forma como ele é usado varia pouco conforme a faixa etária do dono, indica outro grupo de cientistas ; dessa vez, americanos. Para autores e especialistas, os resultados de ambos os estudos podem ajudar na criação de estratégias que estimulem o uso mais saudável desses dispositivos móveis.

;Há alguns anos, venho observando as experiências de pessoas com smartphones e ouvindo sobre as frustrações delas com a forma como se envolvem com o telefone. Por outro lado, quando as perguntamos sobre o que acham significativo sobre o fato der ter o aparelho, ninguém diz: ;Ah, nada;. Todas podem apontar experiências que têm um significado pessoal;, diz ao Correio Alexis Hiniker, professor-assistente da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, e um dos autores do segundo estudo, apresentado na ACM CHI, conferência sobre fatores humanos em sistemas computacionais realizada, na última terça-feira, na Escócia.

No estudo, Hiniker e sua equipe entrevistaram três grupos de usuários de smartphone ; alunos do ensino médio, universitários e adultos graduados ;, com idade entre 14 e 64 anos. As entrevistas com os 39 voluntários começaram com perguntas básicas e um desafio simples: ;passear; pelos aplicativos do aparelho sem muita preocupação. Nas entrevistas sobre a experiência, os autores identificaram uma série de gatilhos comuns.

Por exemplo, os voluntários começavam a usar o aparelho enquanto aguardavam um amigo, durante tarefas tediosas e repetitivas, em situações socialmente desajeitadas e quando esperavam receber uma mensagem ou uma notificação. ;Pensávamos que teríamos uma visão mais distinta sobre os comportamentos dos participantes conforme a faixa etária;, conta Jonathan Tran, um dos autores do trabalho e pesquisador da Universidade de Washington.

As justificativas para o uso do smartphone também variaram pouco. ;Os participantes falaram sobre tudo nos mesmos termos: os alunos do ensino médio disseram: ;Sempre que tenho um momento morto, se tiver um minuto entre as aulas, pego meu telefone;. E os adultos, ;Sempre que tenho um instante de espera, se eu tiver um minuto entre ver pacientes no trabalho, pego meu telefone;;, ilustra Tran.

Significados diversos

Em uma segunda etapa, os cientistas pediram aos voluntários que sugerissem uma estratégia que pudesse ajudá-los a utilizar o aparelho com moderação. ;Muitos esboçaram mecanismos de bloqueio, em que o telefone essencialmente não responde aos comandos por um período de tempo. Mas os participantes mencionaram que, embora se sentissem mal com relação ao comportamento, não era o suficiente para utilizarem essas soluções. Houve alguma ambivalência;, frisa Tran.

Segundo a equipe, o resultado sinaliza a possibilidade de uma ideia mais sutil por trás do relacionamento das pessoas com os smartphones. ;Se o telefone não fosse valioso, com certeza, o mecanismo de bloqueio funcionaria muito bem. Nós poderíamos simplesmente parar de ter esses dispositivos, e o problema seria resolvido. Mas esse não é realmente o caso;, ressalta Hiniker.

Um dos sinais constatados que sinalizam a existência dessa relação mais complexa é o fato de os voluntários atribuírem significados diversos à experiência com o aparelho, principalmente quando se conectam ao mundo real por meio de aplicativos. ;Um participante falou sobre como um gerador de memes o ajudou a interagir com a irmã porque eles se identificavam o tempo todo. Outra mencionou que o Kindle permitiu que ela se conectasse com o pai, que estava lendo os mesmos livros;, conta Hiniker.

Segundo o pesquisador, há, inclusive, uma análise econômica nessa relação. ;As pessoas descrevem isso como um cálculo. Pensam: ;Quanto desse tempo é realmente investido em algo duradouro, que transcende esse momento específico de uso?;. Elas se importam se o período gasto no celular gerou algum valor, não é a quantidade de tempo que as preocupa, mas como ele é gasto;, resume.

;Estamos tentando oferecer boas notícias: mostrar que nosso desejo por interação humana é viciante e que há soluções bastante simples para lidar com isso;
Samuel Veissi;re, professor e pesquisador do Departamento de Psiquiatria da Universidade McGill

;As pessoas têm uma boa noção do que é importante para elas. Por isso, podem tentar adaptar o que está em seu telefone para apoiar o que consideram significativo. A solução não é se livrar da tecnologia;
Alexis Hiniker, pesquisador e professor-assistente da Universidade de Washington

Em vez de antissocial, hipersocial

A dedicação excessiva ao smartphone sempre levanta questões sobre falta de sociabilidade. Um estudo publicado na revista Frontiers in Psychology sugere o contrário. O hábito pode ser hipersocial, não antissocial. ;Há muito pânico em torno desse tópico. Estamos tentando oferecer boas notícias: mostrar que nosso desejo por interação humana é viciante e que há soluções bastante simples para lidar com isso;, ressalta Samuel Veissi;re, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade McGill, no Canadá, e um dos autores do trabalho.

O cientista revisou uma série de estudos sobre o uso disfuncional da tecnologia inteligente a partir de uma perspectiva evolucionária. Descobriu que as funções mais viciantes do aparelho compartilham uma característica: exploram o desejo humano de se conectar com outras pessoas. Veissi;re explica que o desejo de vigiar e monitorar os outros ; e também de ser visto e monitorado ; está no fundo de nosso passado evolucionário. O cientista destaca que os seres humanos evoluíram para ser uma espécie exclusivamente social e exigem informações constantes de terceiros. Isso serve como um guia para um comportamento culturalmente apropriado. ;É também uma maneira de encontrar significado, objetivos e um senso de identidade;, complementa.

A psicóloga clínica Patricia Luque também acredita que a forma de utilização do celular atualmente apenas muda um comportamento social que é constante na história humana. ;Isso ocorre desde que o homem vive nas cavernas. O mote principal não muda, apenas a maneira que ele ocorre. Hoje, temos reuniões virtuais, por exemplo. Só muda o meio como é feito;, frisa. ;Talvez, no futuro, manteremos nossas conversas, mas isso poderá ser feito também com robôs.;


Cérebro sobrecarregado

Apesar da demanda natural de sociabilidade, Veissi;re admite que o ritmo e a escala da hiperconectividade fazem com que o sistema de recompensas do cérebro possa ser sobrecarregado, levando a vícios prejudiciais. Dessa forma, desativar as notificações e configurar os horários apropriados para verificar o telefone, por exemplo, podem ajudar a recuperar o controle sobre o smartphone. ;As políticas de local de trabalho que proíbem e-mails noturnos e de fim de semana também são importantes. Em vez de começar a regulamentar as empresas de tecnologia ou o uso desses dispositivos, precisamos começar a conversar sobre a maneira correta de usar os celulares;, defende.

Luque lembra que, apesar de despertar preocupações, o risco de ter as interações sociais comprometidas devido à dedicação excessiva a um aparelho da moda já desencadeou reações parecidas no passado. ;Lembro que fiz pesquisas analisando o cenário de quando surgiu o rádio. Nessa época, muitas pessoas achavam que ele ia extinguir completamente o contato social, e isso não ocorreu;, ilustra.

Demanda por novos recursos

Os celulares do futuro deveriam ter recursos mais eficazes para ajudar no controle do tempo dedicado a eles, defende Alexis Hiniker. O professor da Universidade de Washington sugere que os projetistas abandonem a ideia de mecanismos de bloqueio total do sistema e criem aplicativos que permitam que o usuário controle o seu envolvimento.

;As pessoas têm boa noção do que é importante para elas. Por isso, podem tentar adaptar o que está em seu telefone para apoiar o que consideram significativo;, justifica. ;Isso é muito motivador. A solução não é se livrar da tecnologia. Ela fornece um valor enorme;, justifica.

João Armando, psiquiatra do Instituto Castro e Santos, em Brasília, chama atenção para a necessidade de novos recursos nesse sentido. ;Cada vez mais dependências que não são químicas são estudadas, como os jogos de videogame. O que víamos com esses eletrônicos antigamente hoje migrou para o celular. Temos que acompanhar essas mudanças para saber lidar com elas da melhor forma possível.;

Para o psiquiatra, outro ponto que merece destaque é a substituição do contato físico pelo virtual, tema que pode ser aprofundado em futuras pesquisas. ;Acredito que também vale observar mais a fundo o que essa troca de sociabilidade gera na vivência. Vemos que muitos jovens perdem um pouco a interpretação física, como o toque e o olhar. É outro tipo de vivência, que pode causar prejuízos;, frisa.

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