Paloma Oliveto
postado em 05/03/2019 00:18
Desde 1982, quando a Aids foi descrita pela primeira vez pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) norte-americano, apenas um portador da doença entrou em remissão total, sem sinais da existência do vírus em seu organismo. Agora, um grupo internacional de pesquisadores anunciou o segundo caso em quase quatro décadas de um indivíduo que, depois de passar por um transplante de células-tronco, viu-se livre do HIV.
Não se pode falar em cura da Aids, ressaltam os cientistas envolvidos no estudo, publicado na revista Nature. Mas, como frisa o líder da pesquisa, Ravindra Gupta, da Universidade College Londres e da Universidade de Cambrige, ;isso traz esperança para novas estratégias de tratamento que, juntas, possam eliminar o HIV;. Ainda que hoje a síndrome da imunodeficiência adquirida seja abordada como uma doença crônica ; e não mais letal ;,15 milhões dos 37 milhões de infectados não têm acesso à terapia antirretroviral e, mesmo entre os tratados, os casos de resistência aos medicamentos são preocupantes. ;A supressão durável do HIV sem necessidade de drogas é, portanto, uma prioridade global urgente;, diz o artigo.
Chamado de Paciente de Londres, o homem descrito no trabalho, que será apresentado na noite desta terça-feira (5/3), na Conferência sobre Retrovírus e Infecções Oportunistas, em Washington, repete o êxito do Paciente de Berlim. Em 2007, o norte-americano Timothy Brown, HIV-positivo, foi submetido a um transplante de medula óssea, onde são formadas as células do sistema imunológico, entre outras, para tratar uma leucemia. Depois de passar pela radiação que destruiu a própria medula ; procedimento padrão nessa cirurgia ;, ele recebeu a de um doador imune ao vírus. Esse homem carregava uma versão mutante de moléculas que, posicionadas na superfície das células de defesa, funcionam como receptoras, permitindo a entrada de substâncias para o núcleo celular.
A grande jogada do HIV é se unir a esses receptores ; em especial, a um produzido pelo gene CCR5 ; para, então, adentrar as células de defesa do organismo. Uma vez lá, o vírus usa o maquinário celular para inserir seu material genético. O doador de medula de Timothy Brown tinha uma rara condição, presente em 1% da população mundial: uma variante do CCR5 que não produz o receptor mais usado pelo vírus para promover a infecção. Brown parou de usar a terapia antirretroviral e, ainda hoje, não apresenta sinais da presença do HIV. Apesar do sucesso desse caso, procedimentos semelhantes que se seguiram a ele não surtiram o mesmo efeito.
O tratamento do Paciente de Londres, que prefere o anonimato, foi bem menos tóxico, contudo. Diagnosticado com HIV em 2003, ele entrou no regime antirretroviral, com a combinação de três medicamentos, em 2012. No fim daquele mesmo ano, o homem descobriu um linfoma Hodgkin grau 4, o mais avançado. A quimioterapia de primeira linha não fez o efeito desejado, e os médicos resolveram tentar o transplante de medula óssea. Embora nenhum doador 100% compatível tenha sido identificado, havia um no cadastro mundial que chegava próximo e era portador da variante do CCR5. ;Mas o tratamento que fizemos foi diferente do Paciente de Berlim, porque não envolveu radioterapia;, esclarece o coautor do estudo, Ian Gabriel, pesquisador do Imperial College Londres.
Assim como Timothy Brown, o Paciente de Londres teve um início de rejeição, mas que foi controlada. Ele continuou nos antirretrovirais por mais 16 meses, quando os médicos suspenderam o tratamento. A partir daí, os exames mostraram que as células imunológicas do homem continuam sem o receptor CCR5 e, portanto, livres do HIV. Ele já se encontra em remissão há 18 meses. ;Ao alcançar a remissão em um segundo paciente usando uma abordagem semelhante, mostramos que o Paciente de Berlim não era uma anomalia, e que foi realmente as abordagens de tratamento que eliminaram o HIV nessas duas pessoas;, disse Gupta. Quando o caso de Brown foi descrito, parte da comunidade científica levantou a suspeita de que o transplante não tivesse relação com a eliminação do vírus.
Os autores do estudo destacam que, por ser uma cirurgia arriscada e que depende de doadores compatíveis, o transplante de medula óssea não pode ser considerado um tratamento para todos os pacientes de HIV ; exceto aqueles que necessitem do procedimento por terem desenvolvido doenças como leucemia e linfoma. Porém, dizem que o sucesso obtido pelo Paciente de Londres indica um caminho promissor para novas estratégias terapêuticas: prevenir que o gene CCR5 se expresse.
;Enquanto esse tipo de tratamento obviamente não é prático para tratar os milhões de pessoas ao redor do mundo vivendo com HIV, relatos como esses podem ajudar no desenvolvimento da cura do HIV;, opina Andrew Freedman, pesquisador de doenças infecciosas da Universidade de Cardiff, que não participou do estudo. ;A cura provavelmente está a muitos anos distante de nós e, até lá, precisamos continuar apostando no rápido diagnóstico e no início da combinação da terapia antirretroviral crônica. Essa terapia é altamente efetiva tanto em restaurar uma expectativa de vida quase normal quanto na prevenção da transmissão para outras pessoas.;
Resistência adquirida
- O HIV infecta o organismo entrando nas células CD4, do sistema imunológico. Uma vez no interior, ele usa o maquinário da própria célula para replicar seu material genético.
- Para conseguir entrar na CD4, o HIV se junta a receptores da superfície da célula. O mais comum é o CCR5. Pessoas que têm duas cópias mutantes do alelo CCR5 são resistentes à variante HIV-1 do vírus. Sem ;permissão; do receptor, o vírus não entra na célula e, portanto, não as infecta.
- O paciente de Londres foi diangosticado em 2012 com linfoma de Hodgkin avançado. Trata-se de um câncer do sistema linfático. Para tratar a doença, ele foi submetido a quimioterapia e, em 2016, a um transplante de células-tronco hematopoiéticas (precursoras das células sangúineas). O doador tinha duas cópias mutantes do CCR5.
- Além de destruir as células cancerosas, a quimioterapia ajudou a matar as células do HIV que se dividiam.
- Com o transplante, as novas células do paciente começaram a nascer com a variação do doador. Dessa forma, elas não expressam o receptor CCR5, impedindo que o HIV consiga adentrá-las.
- O paciente de Londres está há 18 meses em remissão e as células do seu sistema imunológico continuam não expressando o receptor CCR5.
PALAVRA DE ESPECIALISTA
"Outros pacientes tratados de forma similar desde o Paciente de Berlim não tiveram resultados semelhantes. Se nós conseguirmos entender melhor por que o procedimento funciona em alguns pacientes e não em outros, estaremos mais perto do nosso objetivo de curar o HIV. No momento, o procedimento ainda é envolto de muitos riscos para ser usados em pacientes que estão bem. Mas isso pode encorajar pacientes HIV que precisam de um transplante de medula óssea a considerar um doador CCR5 negativo, se possível"
Graham Cooke, infectologista e professor de medicina do Imperial College Londres