Um tratamento neurotecnológico revolucionário ajudou a reverter a paralisia de pacientes paraplégicos. O método foi desenvolvido por cientistas suíços e funciona por meio da estimulação elétrica aplicada diretamente na medula, com o uso de um implante sem fio. Submetidos à abordagem experimental, três pacientes que sofriam com a paralisação dos membros inferiores conseguiram caminhar em poucos meses. As descobertas foram divulgadas em dois estudos publicados nas revistas britânicas Nature e Nature Neuroscience.
Os autores das pesquisas contam que estudos prévios com a estimulação elétrica ajudaram poucos pacientes paraplégicos a reaver os movimentos parcialmente, percorrendo distâncias consideradas curtas. Nesses casos, assim que a eletricidade era ;desligada;, os indivíduos retornavam imediatamento ao estado de paralisia. Em busca de resultados mais animadores, os investigadores investiram na estimulação elétrica epidural (EES), técnica que já restaurou a locomoção em ratos com lesão da medula espinhal.
A EES foi administrada em três homens com lesão medular crônica (sofrida havia mais de quatro anos) e paralisia parcial ou completa dos membros inferiores. Mapas de ativação de neurônios motores e modelos simulados serviram para identificar os padrões de estimulação para diferentes grupos musculares. A EES foi aplicada por um gerador de pulsos, controlado em tempo real via comunicação sem fio e programado para ser coordenado com o movimento pretendido.
;O momento exato e a localização da estimulação elétrica são cruciais para o paciente produzir a locomoção específica necessária. É também essa coincidência espaço-temporal que desencadeia o crescimento de novas conexões nervosas;, explica, em comunicado, Grégoire Courtine, neurocientista do Instituto Federal Suíço de Tecnologia (EPFL em inglês) e principal autor dos estudos. Para funcionar, a estimulação direcionada deve ser tão precisa quanto um relógio suíço. ;Em nosso método, nós implantamos uma matriz de eletrodos sobre a medula espinhal que nos permite direcionar o movimento do indivíduo de acordo com os grupos musculares das pernas;, acrescenta Jocelyne Bloch, neurocirurgiã do Hospital Universitário de Lausanne e responsável pelos implantes.
Rapidez
Segundo os pesquisadores, o maior desafio enfrentado pelos pacientes foi aprender como coordenar a intenção do cérebro com a estimulação elétrica. Eles, porém, não demoraram muito para vencê-lo. Alguns dias após o início do tratamento, evoluíram de andar em uma esteira para andar apoiados no chão ; nos dois casos, enquanto recebiam a EES. Na mesma condição, também foram capazes de ajustar a elevação e o comprimento da passada. Eventualmente, os pacientes conseguiam andar por até uma hora na esteira.
Após a reabilitação, os três voluntários puderam andar de forma independente (com apoio parcial ou com andador) enquanto recebiam a estimulação elétrica epidural e recuperaram movimentos voluntários das pernas sem estarem submetidos à EES. ;Todos os três participantes puderam andar com suporte de peso corporal após apenas uma semana e melhoraram tremendamente em cinco meses de treinamento. O sistema nervoso humano respondeu ainda mais profundamente ao tratamento do que esperávamos;, frisa Courtine.
Sem fadiga
A abordagem gerou resultados mais positivos do que técnicas similares anteriores devido à forma como a estimulação foi feita. Além de mais minuciosa e de acompanhar os sinais de cada movimento dos pacientes, a abordagem usa estímulos elétricos que não são contínuos. ;Dessa forma, ela promove a locomoção, preservando os sinais sensoriais provenientes das pernas. Além disso, os pacientes não exibiam nenhuma fadiga muscular nas pernas, outro ponto positivo;, detalha Courtine.
Renato Deusdara, neurocirurgião do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, e membro titular da Sociedade Brasileira de Coluna, concorda que o diferencial da técnica é a maneira minuciosa de estímulo de movimento. ;Os locais em que os eletrodos foram implantados e essa estimulação em forma de looping fazem com que o aparelho refaça o movimento exato dos músculos;, explica. ;Por exemplo, se você estiver em pé, vai ter de mexer a coxa e a batata da perna para se locomover. Essa sequência é ;copiada; por meio desses estímulos;, ilustra.
O médico explica que essa mimetização é responsável pelos resultados obtidos, ainda que não ocorra a estimulação. ;Mesmo após quatro anos sem andar, que é o caso dos participantes do estudo, eles mantêm algumas vias relacionadas ao movimento preservadas. O paciente retoma a forma de agir quando precisa se movimentar, é o que chamamo de noção espacial. Ele consegue saber se o pé se movimenta mesmo de olho fechado;, detalha. ;É claro que alguns pacientes podem não ter essa mesma preservação, depende do dano ocorrido na medula.;
Os autores do estudo ressaltam que mais voluntários precisam ser analisados para se considerar algumas especificidades da técnica. A intenção da equipe é que a tecnologia esteja disponível em hospitais e clínicas. ;Estamos construindo uma neurotecnologia para ser testada logo após a lesão ter ocorrido, quando o potencial de recuperação é alto, e o sistema neuromuscular ainda não sofreu a atrofia que acompanha a paralisia crônica. Nosso objetivo é desenvolver um tratamento amplamente acessível;, adianta Courtine.
Palavra de especialista
Futuro brilhante
;A tecnologia e a reabilitação avançaram ao ponto de pessoas com lesão medular poderem se levantar da cadeira de rodas e começar a andar. Por muitos séculos, acreditamos que a paralisia devido à lesão da medula espinhal era incurável se nenhuma recuperação ocorresse nos primeiros seis meses após o acidente. Mas, por meio de uma combinação de tecnologia avançada que fornece estimulação elétrica diretamente para a medula espinhal e fisioterapia intensiva, pessoas com lesão medular estão começando a andar novamente. Esses estudos mostram que alguns movimentos voluntários persistiram mesmo quando a estimulação foi desligada. Esses resultados levam os autores a repensar a forma como vemos e tratamos a lesão da medula espinhal e a plasticidade do sistema nervoso. Esses resultados demonstram claramente o futuro brilhante para o tratamento da lesão medular;
Chet Moritz, pesquisador dos departamentos de Engenharia Elétrica e de Computação e de Medicina de Reabilitação, Fisiologia e Biofísica da Universidade de Washington, em um artigo opinativo publicado na revista Nature
;Todos os três participantes puderam andar com suporte de peso corporal após apenas uma semana e melhoraram tremendamente em cinco meses de treinamento;
Grégoire Courtine, neurocientista do Instituto Federal Suíço de Tecnologia (EPFL em inglês) e principal autor do estudo