A biodiversidade é o principal ingrediente para a manutenção da saúde de um ecossistema. Em alguns lugares do mundo, esse elemento é mais generoso. Caso da América do Sul, a região do planeta com maior número de espécies animais e vegetais do planeta. Entender o que define essa variação de padrão é uma importante pergunta, respondida agora por uma equipe internacional de pesquisadores, incluindo do Brasil, em um artigo publicado nesta semana na revista Science. Os cientistas construíram um modelo computacional paleoclimático e biológico que recriou 800 mil anos da história do continente, um período intensamente marcado por glaciações, as ;eras do gelo;.
Thiago F. Rangel, pesquisador do Departamento de Ecologia da Universidade Federal de Goiás (UFG) e principal autor do estudo, ao lado de Robert K. Colwell, da Universidade de Connecticut, nos EUA, explica que, há pelo menos 100 anos, os biólogos tentam descobrir por que algumas regiões do planeta têm uma diversidade tão maior do que outras. Nesse meio tempo, muitas hipóteses surgiram, mas, até agora, nenhum trabalho de grande porte havia conseguido elucidar essa questão.
Para tentar respondê-la, Rangel voltou-se à região mais biodiversa do continente: os Andes. ;Essa é a única cadeia de montanha que cruza o norte e o sul de um continente, correndo ao lado da maior floresta tropical do mundo (a Amazônica);, diz. Embora muitos cientistas apostassem que a concentração de tantos ecossistemas em um só local fosse a razão de tamanha riqueza de espécies, faltava a comprovação rigorosa. ;O que fizemos foi testar essas questões de maneira mais criteriosa e científica, recriando a América do Sul em computador;, conta.
O cientista da UFG trabalha há 20 anos com modelos de simulação de biodiversidade. Para o estudo de agora, ele contou com a parceria de paleoclimatólogos, que recriaram os padrões de temperatura e precipitação do continente dos últimos 800 mil anos. Esses dados foram associados ao modelo biológico, fornecendo um verdadeiro retrato do passado ecológico da América do Sul.
Os pesquisadores surpreenderam-se ao descobrir que os padrões de biodiversidade na região não mudaram muito ao longo de tanto tempo. ;A maioria das espécies vivendo na América do Sul tem mais de 800 mil anos, mas nossos resultados sugerem que mesmo as antigas têm se deslocado pelo continente da mesma forma que as mais jovens, todas contribuindo com os mesmos padrões de riqueza de espécies;, diz Robert K. Colwell.
Impactos do clima
Segundo Rangel, o clima afeta as espécies de três maneiras. Primeiro, determina onde estarão: se há variações, elas vão migrando de um lugar para o outro, onde encontram as condições necessárias de sobrevivência. A combinação de temperatura e precipitação também é capaz de extinguir uma espécie ou fragmentar seu habitat. Por último, variações climáticas podem determinar o isolamento de uma espécie, o que tem consequências ruins ou positivas. Por exemplo, caso seja endêmica, ou seja, restrita a uma região geográfica, isso pode determinar seu fim. Porém, esse mesmo processo é capaz de fazer com que, passado muito tempo, ela dê origem a múltiplas subpopulações.
Tudo isso foi capturado pelo modelo, que detectou os lugares mais favoráveis ao surgimento de novas espécies, à manutenção das atuais e à extinção de outras: os berçários, museus e cemitérios. Os Andes, como se supunha, são o berço da América do Sul. Quando o clima permite, algumas espécies andinas deslocam-se para a Mata Atlântica, ao mesmo tempo em que as desse bioma migram para os Andes, tudo isso por meio de pontes ecológicas. Quando, por questões climáticas, essas pontes se fecham, ocorre o isolamento e diversas espécies surgem tanto nos Andes quanto na mata. Rangel explica que os caminhos que permitem o intercâmbio de animais e plantas ocorrem nos diferentes ciclos de glaciação ; o último terminou por volta de 12 mil anos atrás.
[SAIBAMAIS]Porém, um fato pegou os cientistas de surpresa. A encosta dos Andes tanto pode ser local de nascimento quanto de morte de espécies. ;Quando há flutuações climáticas, as espécies amazônicas correm para os Andes para se refugir, porque a Amazônia é plana e elas não têm para onde ir; o abrigo mais próximo é a 3 mil quilômetros de distância;, explica Rangel. Contudo, as algumas espécies tropicais podem não conseguem sobreviver.
Por outro lado, plantas, aves e mamíferos andinos não são afetados. Eles migram mais ao sul da cordilheira, que se estende até o Chile. Já as espécies da Patagônia são as mais atingidas. ;O problema não é para onde escapar, é tolerar 30 a 40 graus a menos do que conseguem;, diz o biólogo. O padrão observado pelo modelo mantém-se ainda hoje, com essa região registrando baixas diversidade.
;Seguro extinção;
O modelo também determina a existência de museus ; lugares onde as espécies podem permanecer por muito tempo, sem serem extintas. ;São lugares mais estáveis climaticamente, conferindo um ;seguro extinção;;, observa Rangel. A encosta amazônica e a Mata Atlântica se encaixam nesse perfil.
Rangel destaca que, no modelo estudado pelo grupo de pesquisadores, que cobre um período de oito glaciações, ainda não existia a influência humana. ;Mudanças climáticas aconteceram por toda a história, mas pior que o efeito delas em si são as atuais combinações com a fragmentação e a extinção dos habitats, afetando não só o clima, mas a paisagem, a geografia; diz. O cientista observa que é preciso investir na preservação de parques nacionais em regiões montanhosas, segundo ele de fundamental importância para a manutenção de espécies. ;Eles são a nossa salvação;, diz.
Palavra de especialista: modelo inovador
O estudo é inovador, principalmente pelo modelo desenvolvido. A capacidade de incluir vários processos importantes para a geração e manutenção da biodiversidade num único modelo que prevê a distribuição dela no espaço geográfico ; ou seja, que traduza conhecimento em mapas ; vai auxiliar a ciência no estudo dos eventos passados e também pode ajudar a prever o que poderá acontecer no futuro. O trabalho fornece um caminho novo para estudos da distribuição da biodiversidade, e integra conhecimento sobre os vários processos que podem ter influenciado a biodiversidade. Nesse sentido, é aplicável a qualquer região.
Ana Carnaval, bióloga, pesquisadora do City College de Nova York