Uma equipe americana detectou, em um experimento com universitários, três características com papel-chave no vício em redes sociais. Segundo eles, o trabalho, apresentado neste mês, na 51; Conferência Internacional do Havaí sobre Ciências do Sistema, poderá ajudar na prevenção de um problema que acomete pessoas de todas as idades. ;Devido à importância e à onipresença das aplicações de redes, focamos no vício em mídias sociais. Sabemos, a partir da pesquisa sobre outros tipos de dependências, como a toxicodependência, que as características da personalidade podem desempenhar papéis importantes no desenvolvimento desse tipo de comportamento;, conta ao Correio Hamed Qahri-Saremi, um dos autores do estudo e professor da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.
Na pesquisa, Saremi e colegas coletaram dados de quase 300 estudantes, que responderam a perguntas relacionadas à personalidade e a como se comportam em plataformas tecnológicas de interação social. Analisando os dados, os investigadores descobriram três traços de personalidade mais relacionados ao vício em redes sociais: o neuroticismo (também chamado de instabilidade emocional), a conscienciosidade (relacionada à disciplina e ao controle de impulsos para atingir metas específicas) e a amabilidade (o quanto uma pessoa é agradável e cooperante).
Segundo Saremi, os três traços fazem parte do modelo chamado cinco fatores, um conceito bem estabelecido entre cientistas usado para entender teoricamente a personalidade humana. Os outros dois traços ; extroversão e abertura para novas experiências ; não desempenharam, no experimento, papel importante na probabilidade de desenvolvimento de vício em redes sociais.
Identificadas as três características influentes, os pesquisadores resolveram relacionar o efeito delas e o desencadeamento do vício. ;É um tema complexo e complicado. Você não pode ter uma abordagem simplista;, justifica Isaac Vaghefi, professor da Universidade de Binghamton, em Nova York, e um dos autores do estudo.
Os resultados mostram que, por si só, os traços de neuroticismo e de conscienciosidade têm efeitos diretos sobre a probabilidade de desenvolvimento do vício. O excesso de instabilidade emocional parece aumentar a vulnerabilidade à dependência. Por outro lado, indivíduos mais disciplinados têm menor probabilidade de ser acometidos pelo problema. Quando os traços são testados em conjunto, porém, o neuroticismo modera o efeito da conscienciosidade em relação ao vício.
Para a surpresa da equipe, identificou-se que o grau em que alguém é amigável e empático não exerce efeito significativo sobre o uso exagerado das redes sociais. Isso muda, porém, quando esse traço é combinado à conscienciosidade. Para Isaac Vaghefi, a descoberta inesperada pode ser explicada pela perspectiva de ;adição racional;, ou seja, alguns usuários estão intencionalmente usando mais de uma rede e por mais tempo para maximizar os benefícios desse comportamento. ;Usuários amigáveis provavelmente valorizam suas relações nas redes sociais. Para esse grupo, a conscienciosidade pode resultar em uma quantidade excessiva de tempo de comunicação, como objetivo que deliberadamente perseguem;, explica Saremi.
Escolhas racionais
A pesquisa mostra ainda que uma característica comum aos que acessam as redes em excesso é que o vício não resulta da falta de racionalidade. ;Isso é único porque esse vício não é resultado de irracionalidade ou da falta de controle. Em vez disso, uma pessoa o desenvolve através de um processo racional e bem-intencionado;, detalha Saremi.
Thiago Blanco, psiquiatra da infância e adolescência e professor da Faculdade de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde, em Brasília, avalia que os resultados do estudo estão em concordância com suspeitas levantadas na área clínica. ;Sabemos da fragilidade do ego, da necessidade de sentir busca pelo reconhecimento, de nos sentirmos amados. São esses fatores que levam o sujeito a precisar desses recursos tecnológicos. As redes sociais têm um papel importante nessa busca incessante de se sentir amado, de ter um reconhecimento pessoal, uma validação;, diz.
Blanco frisa que as interações virtuais não são negativas, o problema está na recorrência excessiva a elas. ;Não é o uso, mas como as pessoas interagem com elas. As redes sociais fortalecem as relações, a questão é que, quando isso se extrapola, pode trazer sofrimento. É o que temos trabalhado bastante com adolescentes nos consultórios: saber lidar com essa ferramenta da melhor foma para que eles não se sujeitem a sofrimentos;, destaca.
Avaliação por teste
A big five é uma das teorias de personalidade mais utilizadas para determinar os níveis de introversão de uma pessoa, muito adotada nas áreas de negócios, coaching e aconselhamento. Por meio de um teste, pode-se determinar a porcentagem de cada um dos cinco traços considerados. Especialistas, porém, destacam que a personalidade humana segue em constante mutação devido a fatores relacionados à história de vida, ao aprendizado e à biologia de um indivíduo. Por isso, o resultado do teste não pode ser usado de uma forma determinista.
Tratamento diferenciado
As conexões entre traços individuais e o vício em redes sociais identificadas na pesquisa americana permitem inferir que o problema não pode ser tratado de forma homogênea, segundo os autores. ;Nossas descobertas explicam como as características da personalidade podem ser usadas para prever a propensão de um usuário a se tornar adicto em mídias sociais e explicam também que os usuários dependentes não devem ser considerados como um único grupo, já que os três fatores da personalidade podem desempenhar distintos papéis na propensão ao vício;, frisa Hamed Qahri-Saremi, um dos autores do estudo.
A diferenciação teria influência também no tipo de tratamento a ser usado. ;As políticas e os tratamentos para controlar o vício em mídia social para um grupo de usuários devem ser apropriados a determinado perfil de personalidade;, explica o pesquisador. Psicóloga do Instituto Castro e Santos, em Brasília, Sylvania Emerick acredita que esse tipo de abordagem poderá ser útil para a área médica. ;Para nós que trabalhamos com saúde mental, é importante ter essas informações, elas são valiosas para entendermos os mecanismos envolvidos no vício e, dessa forma, tratá-lo da melhor maneira;, explica.
A especialista ressalta, porém, que não se pode desconsiderar o aspecto biopsicossocial desse fenômeno. ;É um termo que usamos para dizer que fatores biológicos, psicológicos e sociais estão envolvidos. É interessante usar traços de personalidade, que já são conhecidos, e relacioná-los a esse vício moderno, porque sabemos que toda dependência tem as mesmas características como base;, diz.
Mais estudos
Emerick sugere que o trabalho americano seja repetido com crianças e adolescentes. ;Nesse estudo, o foco é o jovem adulto. mas hoje vemos que os com menos idade têm, cada vez mais cedo, contato com essas tecnologias. Seria interessante analisar esse viés;, diz. ;Outra coisa importante de se frisar é que não podemos encarar o uso das redes sociais como algo corriqueiro, banal. Hoje, usamos o smartphone constantemente e achamos que isso é comum, mas pode ser prejudicial.;
Os cientistas darão continuidade à pesquisa. O próximo foco será analisar características de indivíduos de outras culturas. ;Vamos tentar ampliar com usuários de redes sociais de outros países para analisar se as diferenças culturais podem mudar os efeitos das características da personalidade no vício das redes sociais;, adianta Saremi. ;Também estamos coletando dados para melhor entender quais recursos e funcionalidades das mídias sociais as tornam mais viciantes. Isso pode possibilitar que, no futuro, os provedores ajudem a controlar esse tipo de dependência.;