Paloma Oliveto
postado em 25/02/2018 08:00
Em uma cena da recém-estreada série da Netflix Everything sucks, que se passa nos anos 1990, o personagem Oliver está em busca de substâncias legais que ;deem barato; e apela para uma internet ainda discada ; e sem o todo-poderoso Google ; para descobrir o que fazer. Um site sugere comer noz-moscada. Os amigos duvidam. Ele, então, sai com esta: ;Mas se está na net, é verdade;.
Acreditar em tudo que circula on-line está mais na moda do que nunca. Não que o fenômeno das fake news tenha surgido com a World Wide Web. Que o digam os muitos documentos deixados pelo orador e político romano Cícero, cuja pena afiada fazia circular, há mais de 2 mil anos, notícias como a de que seu desafeto Claudio entrou vestido de mulher na casa de César, quando só havia damas no local. Mas a velocidade de espalhamento de informações fez da internet ; e, mais especificamente, das redes sociais ; o mais poderoso veículo de disseminação de notícias falsas. Diante da perplexidade causada pelo potencial de manipulação do fenômeno, a ciência quer entender o que leva as pessoas a acreditar cegamente no que é divulgado e procura meios de combater o problema.
Se na época de Cícero quase nada se sabia sobre o funcionamento do cérebro humano, hoje o conhecimento de mecanismos-chave da cognição avançou. A neurociência dá algumas pistas sobre a confiança que alguns indivíduos depositam em notícias como a de que a candidata às eleições presidenciais norte-americanas de 2016, Hillary Clinton, abusou sexualmente de crianças em rituais satânicos ou de que o bicarbonato de sódio cura qualquer tipo de câncer (informação que, segundo as fake news, seria abafada pela indústria farmacêutica).
Embora, até onde se saiba, o homem seja o único animal racional na natureza, o cérebro humano não foi feito, em princípio, para pensar muito. Quando desafiado pelo desconhecido, costuma utilizar atalhos para processar o que não entende. ;Mais do que tolerar a incerteza, tendemos a preencher vazios, mesmo se isso resulta em incorreções. Quando estamos diante de algo que não compreendemos, uma resposta errada pode parecer melhor do que resposta nenhuma; um modelo incorreto do mundo soa melhor que nenhum modelo;, define Steven Brown, psicólogo da Universidade de Glasgow, na Escócia, que pesquisa os impactos da revolução digital.
O especialista diz que, no geral, as pessoas creem que o que ouvem e veem são um reflexo da realidade. Isso se chama realismo ingênuo (ou do senso comum), um conceito da psicologia social segundo o qual o homem tende a acreditar que percebe o mundo tal qual ele é. Ou, como disse Oliver, de Everything sucks: ;Se está na net, é verdade;. ;Muito do que vemos ou ouvimos é ambíguo e os humanos tentam dar sentido às coisas, de forma que se sentem com mais controle de seu ambiente;, justifica Brown.
Viés
Bem antes que as fake news estivessem no centro do debate da sociedade da informação, psicólogos já estudavam os padrões das crenças humanas, e uma das investigações mais seminais nesse sentido foi realizada em 1954 com estudantes universitários de Darthmouth e Princeton. O experimento conhecido por They saw a game (Eles viram um jogo) consistiu em exibir um vídeo de uma partida decisiva de futebol entre os times das duas universidades, ocorrido dois anos antes. Foi um jogo difícil e repleto de faltas, com diversos pênaltis, lesões e um nariz quebrado.
Depois da exibição, os jovens foram convidados a dizer sua percepção sobre a partida. Embora o jogo fosse o mesmo, as impressões mostraram-se completamente opostas. Os estudantes de Darthmouth ;viram; o adversário cometer duas vezes mais infrações que o próprio time, e vice-versa. Quando apresentados aos resultados da enquete, novamente os universitários acreditaram que os colegas da outra instituição estavam errados.
Os estudos sobre o realismo ingênuo têm ligação com outro fenômeno da mente humana: o viés de confirmação, uma tendência a dar por certas informações que confirmam opiniões existentes e desacreditar daquelas que dizem o contrário do que se pensa. Assim, é fácil para um republicano fã de Donald Trump dar crédito a uma notícia que afirma que o ex-presidente Barack Obama nasceu no Quênia e rechaçar indícios de que russos foram contratados pelo magnata para disseminar fake news na campanha presidencial. ;O risco do viés de confirmação é que isso nos permite facilmente descartar os fatos porque sempre há informações alternativas para confirmar um viés. Então, se alguém apresenta um contra-argumento, é da nossa natureza descartá-lo como falso;, alerta Bruce Hull, professor da Universidade de Virginia Tech, para quem Trump é um ;mestre; do viés de confirmação.
Quanto mais envolvimento com uma convicção, maior será a tendência de considerar verdadeira uma informação que sustente as crenças individuais, ainda que elas não se sustentem na realidade. Em 2012, o psicólogo social Peter Ditto, da Universidade da Califórnia em Irvine, descobriu, em um estudo, que pessoas contrárias às campanhas educativas sobre uso de preservativo são menos propensas a acreditar que a camisinha proteja contra gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis. Da mesma forma, indivíduos com escrúpulos morais em relação à pena de morte tendem a crer que essa punição não diminui a criminalidade. ;As pessoas misturam julgamento moral e factual;, observa.
Independentemente da posição ideológica, Ditto afirma que, no geral, os indivíduos acreditam firmemente que suas crenças são baseadas em evidências, enquanto que os oponentes ignorariam, propositalmente, a realidade. ;Agora, vivemos em um mundo de fatos azuis e fatos vermelhos;, diz, em referência às cores dos partidos Democrata e Republicano, respectivamente. ;E isso é um combustível para incendiar o conflito político.;
;Quando estamos diante de algo que não compreendemos, uma resposta errada pode parecer melhor do que resposta nenhuma; um modelo incorreto do mundo soa melhor que nenhum modelo;
Steven Brown, psicólogo da Universidade de Glasgow, na Escócia
Excesso de confiança na intuição
A necessidade de ter seu ponto de vista chancelado pode fazer com que as pessoas, consciente ou inconscientemente, se autoenganem, distorcendo fatos que contrariem suas posições. Foi o que constatou o psicólogo social Troy Campbell, da Universidade do Oregon. O professor de marketing apresentou supostos fatos para voluntários favoráveis e contrários ao casamento entre pessoas do mesmo sexo: algumas informações sustentavam que crianças criadas nesse tipo de família teriam problemas psicológicos; outras afirmavam que uma coisa não tinha nada a ver com a outra. ;Quando a evidência estava ao lado deles, os participantes tachavam a informação de verdadeira. Mas quando era contrária a seus pontos de vista, argumentavam que não se tratava de um fato, mas de uma questão moral;, conta Campbell.
Em uma pesquisa divulgada no ano passado pela Universidade Estadual de Ohio, a professora de comunicação social Kelly Garrett mostrou que pessoas que tendem a confiar em suas intuições são presas fáceis das fake news. ;A tendência de abraçar notícias falsas e teorias da conspiração é uma ameaça à habilidade da sociedade de tomar decisões com base em informações de qualidade. No geral, estamos prestando muita atenção às nossas motivações políticas e, embora o viés político seja uma realidade, não devemos deixar de investigar outros tipos de vieses;, defende.
Para tentar entender como as pessoas aceitam ideias com pouca ou nenhuma evidência por trás, a pesquisadora examinou dados de três pesquisas norte-americanas que incluíram de 500 a 1 mil participantes. Algumas das afirmações do questionário (com as quais era preciso concordar ou discordar) eram: ;Confio nos meus instintos para dizer o que é falso ou errado;, ;evidência é mais importante do que algo parecer ser verdade; e ;fatos são ditados por aqueles no poder;. As respostas dos participantes foram comparadas com suas opiniões sobre questões como a associação entre vacina e autismo (uma fake news disseminada por um médico que perdeu seu registro) e a conexão entre mudanças climáticas e atividades humanas.
Indivíduos que afirmavam confiar nos instintos para julgar um fato como verdadeiro ou falso eram mais propensos a acreditar em notícias falsas. O contrário foi verdadeiro: aqueles que preferiam se guiar por evidências tinham menos risco de tomar as fake news como certas. ;Embora confiar na intuição seja benéfico em algumas situações, isso pode nos deixar suscetíveis à informação falsa;, diz Garrett. Ela destaca a importância da imprensa séria na divulgação de informações de qualidade, pois percebe que as pessoas já não sabem mais em quem confiar. (PO)
;Vacina; contra mentiras
Pesquisadores da Universidade de Cambridge lançaram, na terça-feira, um jogo on-line (fakenewsgame.org) para tentar combater notícias falsas de forma eficiente. O game convida os usuários a criar um meio de comunicação fictício na internet e divulgar fake news, com o objetivo de atrair uma grande audiência. Os jogadores podem recorrer a um exército de contas falsas nas redes sociais, alterar imagens ou difundir artigos pouco rigorosos para alcançar seus objetivos. ;Se você sabe como é estar na pele de uma pessoa que tenta ativamente te enganar, sua capacidade de perceber e resistir a tais técnicas aumenta;, afirmou, em um comunicado, Sander van del Linden, diretor do Laboratório de Tomada de Decisões da Universidade de Cambridge, que trabalha com a ;teoria da inoculação;. ;Nós queremos ajudar a desenvolver ;anticorpos mentais; que possam fornecer alguma imunidade contra a difusão rápida de informações falsas;, completou.
Palavra de especialista
Atalhos
;Ao mesmo tempo em que tentamos identificar os fabricantes de fake news e encorajamos o público a evitar fontes ruins de notícia, é importante ajudar as pessoas a encontrar boas fontes, nas quais possam confiar. Se jovens adultos não sabem em quem confiar, eles desenvolvem atalhos, como recorrer ao Facebook quando querem saber das notícias. A lógica motivadora é que, se um número suficiente de pessoas está compartilhando uma matéria, então, ela deve ser importante e verdadeira;
Stephanie Edgerly, pesquisadora de novas mídias e audiência do Instituto de Pesquisa Política da Universidade de Northwestern