Ciência e Saúde

Restos mortais provam que habitantes originais de Canaã não desapareceram

Na tradição bíblica, os cananeus "habitantes originais da terra onde jorrava leite e mel" foram exterminados pelo Criador. Estudo de DNA feito com restos mortais de 4 mil anos, porém, revela que eles ainda estão presentes no genoma dos libaneses modernos

Paloma Oliveto
postado em 29/07/2017 08:00

Restos mortais de cananeus foram encontrados no sítio Sidon: personagens-chave do Velho Testamento


Eles estão entre os personagens principais do Velho Testamento. Habitantes originais de Canaã, a Terra Prometida, de onde jorrava leite e mel, os cananeus, porém, caíram na desgraça perante Deus. O Todo-Poderoso entrou em guerra contra esse povo e ordenou que os israelitas tomassem seu lugar. Embora muito falados na Bíblia, eles não deixaram registros escritos. Por isso, não se sabe quase nada sobre sua cultura. Para desvendar o mistério milenar, um grupo de pesquisadores ingleses recorreu à tecnologia moderna. Com análise de DNA, começaram a decifrar a história de uma população que, ao contrário do que sugere o texto bíblico, não desapareceu. Ela sobreviveu e deu origem aos atuais habitantes do Líbano.

Já se sabia que, há milhares de anos, os cananeus viveram em uma parte do mundo que, hoje, corresponde a Israel, Palestina, Líbano, Síria e Jordânia. Lá, estabeleceram uma cultura influente no Oriente Médio e arredores. Apesar de não terem deixado escritos sobre sua história, foram eles que criaram o primeiro alfabeto que se tem notícia. Eram conquistadores: criaram colônias por todo o Mediterrâneo. Mas, se são muito falados nos livros do Velho Testamento, especialmente no Êxodo, os cananeus, de repente, parecem sumir do mapa. Se levada ao pé da letra, a Escritura afirma que esse povo foi aniquilado. Textos gregos e egípcios também os mencionam, mas, da mesma forma, não dão notícia de seu paradeiro.

[SAIBAMAIS]Sem saber quem eram, de fato, os cananeus, o que ocorreu a eles e de quem são descendentes, há tempos os cientistas debatem esse mistério. Agora, no maior estudo genômico de vestígios do Oriente Próximo, os pesquisadores do Instituto Wellcome Trust Sanger, da Inglaterra, sequenciaram o genoma total de cinco indivíduos cananeus de 4 mil anos que habitavam uma antiga cidade chamada Sidon, situada onde hoje é o Líbano, na Idade do Bronze. Ao comparar os resultados a outras populações antigas e 99 genomas modernos, eles constataram que os libaneses atuais descendem dessa rica cultura. O estudo foi publicado no American Journal of Human Genetics.

Desafio climático

;Descobrimos que os cananeus eram uma mistura de habitantes locais que se estabeleceram em vilas agrícolas durante o período neolítico e migrantes ocidentais que chegaram à região há cerca de 5 mil anos;, diz Marc Haber, primeiro autor do artigo (Leia três perguntas para). ;Os libaneses do presente provavelmente são descendentes diretos dos cananeus, mas eles também têm uma pequena proporção de ancestralidade de eurasianos que devem ter chegado lá devido a conquistas de populações distantes, como os assírios, persas e macedônios;, completa. Essa miscigenação teria ocorrido por volta de 3,8 mil e 2,2 mil anos atrás.

De acordo com Haber, uma das maiores surpresas do trabalho foi constatar que o genoma de indivíduos que morreram há 4 mil anos em uma região seca e muito quente estava preservado, o que abre a possibilidade de se realizar estudos semelhantes sobre outras populações do passado. ;Nós superamos esse desafio climático pegando amostras do osso petroso da caveira, que é bastante duro e tem grande densidade de DNA. Esse método de extração combinado com os custos baixos de sequenciamento total do genoma tornou o estudo possível.;

Diretor das escavações no sítio arqueológico de Sidon, no Líbano, Claude Doumet-Serhal observou, em nota, que esta é a primeira vez que se tem evidência genética da continuidade populacional na região desde a Idade do Bronze até a era moderna. ;Esses resultados combinam com a continuidade cultural constatada por arqueólogos. A colaboração entre arqueólogos e geneticistas realmente enriquece ambos os campos de estudo e pode responder a questões sobre ancestralidade de formas que especialistas de nenhum dos campos poderiam responder sozinhos;, escreveu.

;Estudos genéticos usando antigo DNA podem expandir nossa compreensão da história e resolver dúvidas sobre origens e descendências de populações enigmáticas como os cananeus, que deixaram poucos registros escritos sobre eles mesmos;, concorda Christ Tyler-Smith, principal autor do trabalho e pesquisador do Wellcome Trust Sanger. ;Agora, queremos investigar a história genética precoce e tardia do Oriente Próximo e ver como ela se relaciona com os arredores;, antecipa.

Três perguntas para Marc Haber, pesquisador do Instituto Wellcome Trust Sanger e primeiro autor do artigo divulgado no American Journal of Human Genetics


O que o motivou a estudar o genoma dos cananeus?
Nós usamos genética para estudar o passado humano, e o Oriente Próximo é de grande interesse para nós, já que tem sido uma região central na pré-história e na história humana. Os cananeus eram uma cultura influente no antigo Oriente Próximo, mas sabemos muito pouco sobre eles. Com a genética, agora temos uma melhor compreensão de quem eles eram e de como contribuíram para as populações do presente. Surpreendeu-nos que as populações atuais parecem ser geneticamente muito semelhantes às da Idade do Bronze, apesar de essa ter sido uma época de muitas conquistas e expansões na região.

Além da importância histórica, o senhor poderia destacar outras implicações do estudo?
O DNA antigo não se preserva bem em climas quentes e secos, mas nosso estudo mostrou que, com a disponibilidade de ricos vestígios arqueológicos e com as melhorias na extração e no sequenciamento de DNA, estudos que usam material genético antigo do Oriente Próximo agora são possíveis.

O senhor acredita que a genética pode revolucionar a forma como a arqueologia e a história são escritas?
A genética, com os registros arqueológicos e históricos, pode fornecer um quadro mais completo do passado humano. Nosso estudo mostra que a genética pode contribuir para nossa compreensão da história humana, mesmo quando os registros históricos são escassos.

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